O controle do Aedes aegypti tem constituído um importante desafio no Brasil. No entanto, técnicas tradicionais de combate ao mosquito já não são tão eficazes quanto em 1955, quando o País conseguiu erradicá-lo pela primeira vez por meio da aplicação de venenos e da eliminação de focos. Desde a década de 1980, quando a dengue voltou com força, o vetor tem avançado e se espalhado por todo o território nacional. A doença alcançou a condição de endêmica nas últimas décadas. Uma nova tecnologia, porém, é apontada como possível ferramenta para mudar o cenário.

Imagem ilustrativa da imagem Controle da dengue ainda é desafio brasileiro
| Foto: Luis Robayo/AFP

Trata-se do Controle Natural de Vetores, desenvolvido pela empresa Forrest Brasil Tecnologia. Segundo a epidemiologista Danielle Queiroz, coordenadora do projeto, a tecnologia TIE (Utilização do Inseto Estéril) consiste na soltura massiva de machos estéreis, que se acasalam com as fêmeas selvagens, que deixam de procriar. Isso provoca uma imediata redução na infestação do mosquito e na disseminação da doença.

Doutora em saúde coletiva pela Universidade Estadual do Ceará e epidemiologista pelo programa certificado em epidemiologia para gestores de saúde da John Hopkins University, Queiroz faz parte do comitê da câmara técnica de especialistas do Ministério da Saúde e está envolvida na produção de um curso de controle das arboviroses da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), além de ser professora do curso de medicina da faculdade Unichristus (Centro Universitário Christus), do Ceará. Ela esteve por 12 anos na coordenação do combate à dengue na Secretaria de Saúde do Ceará e por quatro anos ficou à frente das áreas de vigilância em saúde no Estado.

Qual a vantagem dessa técnica em relação à aplicação de veneno e do controle mecânico por meio da eliminação dos criadouros do mosquito?

Nós estamos com um modelo de controle vetorial que é bem antigo, No último século não tivemos mudanças substanciais. Se você olhar para os agentes de combate de endemias de cem anos atrás, eles adotam praticamente as mesmas estratégias, sendo que hoje a gente vive um momento totalmente diferente, com a dinâmica populacional diferente e com as áreas urbanas com grande densidade populacional. O que acontece é que ao longo dos anos ocorreu uma resistência natural do mosquito, quando a gente fala principal principalmente no adulticida, que é o veneno ou a substância colocada no ambiente por meio do ultrabaixo volume (UBV) e dos larvicidas. O mosquito vai tentando se modificar para resistir a essa agressão. A tecnologia hoje desenvolvida pela Forrest tem a ver com a produção de mosquitos machos estéreis que ao serem colocados no ambiente competem com os mosquitos que a gente chama de selvagem e copulam com as fêmeas. No momento em que as fêmeas põem os ovos, eles saem vazios, porque o macho é estéril e assim ocorre a supressão da população de mosquitos na natureza.

A senhora poderia explicar mais um pouco como é a técnica? A fêmea pode pôr até 500 ovos. Ela só pode fertilizada uma vez em seu ciclo de vida? Como é isso?

A gente atrela uma etapa da produção dos mosquitos machos estéreis em laboratório, mas conta também com a natureza. Esse momento em que os mosquitos macho e fêmea copulam acontece na natureza. Nós temos os ovos que são encontrados no ambiente. No início, sem ter a soltura, a gente tem as armadilhas chamadas ovitrampas - vasos de planta pretos com infusão à base de feno para atrair mosquitos fêmea que buscam locais para pôr ovos - que possibilitam a captura desses ovos. Ou então o próprio município tem algum laboratório de entomologia que possa doar esses ovos e aí a partir disso eles vão para o laboratório. No laboratório, a gente faz a germinação, o mosquito nasce primeiro como pupa e nesse momento é aplicado um método químico em que ele passa a ser estéril. A partir desse momento as pupas também são testadas para saber se estão infectadas com algum arbovírus, como dengue, zika ou chikungunya. Depois eles são separados. Os machos estéreis ficam em uma seção e as fêmeas e os que não forem estéreis passam para outro reservatório. Após ele se tornar um mosquito alado, ele já fica disponível para a soltura. A gente chama de lote esse conjunto de mosquitos e cada lote tem um controle de qualidade. Há a captura de alguns mosquitos e analisa-se a viabilidade. Depois disso ele é liberado no ambiente. No meio ambiente é que ele encontra a fêmea selvagem e eles copulam e acontece a postura de ovos vazios, porque ele é estéril.

O primeiro experimento aqui no Paraná foi em Jacarezinho, onde o índice de infestação era de 16,9% em janeiro de 2018, quando o limite tolerado é de 1%. Era o 25º maior índice no Brasil e o maior no Paraná na época.

O primeiro momento em Jacarezinho foi muito importante, porque foi o primeiro momento de campo para ver o que dava certo, de estruturar os processos de trabalho de campo e de acertar o monitoramento. Nós tivemos em Jacarezinho uma redução considerável da população de mosquitos, mas o período foi curto, então a gente conseguiu comparar Jacarezinho com uma outra área da cidade que não tinha sido tratada. Foi um ensaio controlado, que mostrou que a área tratada ali de Jacarezinho teve uma incidência 14 vezes menor do que a área não tratada. Esse estudo permitiu comparar Jacarezinho com essa área controle e com ela mesma comparada a outros períodos. Quando a gente compara com o período anterior, teve uma redução de 16 vezes na incidência de casos de dengue. Então é um resultado fantástico. Jacarezinho foi a afirmação de que o método realmente estava muito bom e que a gente poderia avançar para tratar populações maiores.

O projeto foi implantado em Ortigueira em novembro de 2020 e em seis meses a redução da população de mosquitos foi de 92%. Em dois meses não foram mais encontrados larvas e ovos na região e o número de doentes caiu de 120 para 4. Além disso, não foram registradas mortes. Esse resultado pode ser obtido em qualquer região?

A gente parte do princípio que sim, adaptando o método para qualquer região, porque dentro do escopo do projeto está previsto que para cada região a gente precisa capturar mosquitos, precisa produzir, é necessário ter uma produção, que eles se reproduzam em laboratório e também que haja a captura de ovos de mosquitos selvagens para que a gente possa fazer a soltura de machos que sejam de linhagens daquela região. Com essa pequena adaptação a gente acredita que é possível ter resultados reproduzíveis em qualquer a área em que o método for aplicado, lógico considerando a população de mosquitos do local.

Vocês fizeram a medição em Ortigueira em relação a essa questão do LiraA ? Como é que estava por lá?

Sim, para iniciar o momento anterior à soltura em qualquer local é feita uma análise do cenário epidemiológico e entomológico, ou seja, a gente vai medir a incidência de casos de dengue. É lógico que a gente entende que tem um período do ano que tem um número menor de casos e de infestação. E desse cenário que a gente chama painel, acontece a intervenção, que é a soltura dos machos estéreis. A gente acompanha ao longo do tempo como esses indicadores se comportam. Isso é padrão. A gente chama de protocolo de pesquisa de campo. Desenha, faz o diagnóstico e vai monitorando esse cenário ao longo dos anos. Se teve um resultado exitoso em uma área menor, de um número menor de habitantes, a gente consegue expandir para coberturas maiores. O que aconteceu agora com Ortigueira, nos últimos 12 meses, vem confirmando também os mesmos achados. Isso nos deixa bem felizes porque quando a gente começou o projeto falava em erradicar o Aedes e isso parecia muito ousado. Mas há como fazer isso.

A população segue sendo orientada a fazer o controle mecânico de limpeza dos quintais para redução dos focos?

Com certeza. A população participa nesse pilar de mobilização, porque se essa existe a soltura do macho estéril, mas se os criadouros permanecerem no ambiente, ele tem a possibilidade de ter uma nova infestação, porque os ovos postos no ambiente podem ficar até 450 dias esperando até a chegada do contato com a água para ser germinado. Então tem a soltura e depois é preciso manter os ambientes sem criadouro, o que é extremamente importante para a sustentabilidade.

O que a gente pode fazer para ter uma erradicação mais permanente do Aedes aegypti? Ele é um mosquito endêmico mesmo ou existe essa possibilidade de acabar com ele?

Hoje o Aedes é um mosquito endêmico, porque ele vive plenamente. Ele se adaptou perfeitamente ao nosso país, às temperaturas e é lógico que se adaptou mais em uma região que a outra. A umidade também é perfeita, principalmente nas áreas mais tropicais. É possível erradicar, mas com os métodos tradicionais é muito difícil, principalmente pela movimentação das pessoas. E e há a possibilidade de ovos ressecados que possam a germinar em meses seguintes, então assim é uma tarefa que não é fácil, porque realmente o mosquito ele é muito esperto no sentido de se adaptar. Com o avanço das tecnologias e até a sobreposição de tecnologias é possível que ele seja eliminado sim, mas aí terão que ser utilizadas estratégias que a gente chama de barreiras. Se tem uma região que foi tratada e que não tem mais o mosquito ou não está mais se detectando ele depois de dois meses. Lá em Ortigueira gente viu que já não tinha mais. Então depois de dois meses que a gente comprova pelo monitoramento que não tem mais mosquito, as ações de sustentabilidade devem acontecer, porque enquanto não eliminar do território, há a possibilidade sim da reintrodução. Então teria que ser uma estratégia com zoneamento de área e contando também com as barreiras naturais, porque tem algumas barreiras que impedem, como as grandes cadeias de montanhas que podem impedir a passagem do mosquito de um território para outro. Mas principalmente dentro das áreas urbanas esse é o maior desafio, principalmente porque ele se adaptou a essa área urbana. Hoje a gente encontra o mosquito em bebedouros domésticos mesmo, nas gavetas da geladeira, em lugares que antes não eram utilizados, em pequenos depósitos de água como tampinha de garrafa. Então ele é extremamente adaptável. É difícil sim, mas com as técnicas tradicionais talvez seja impossível, mas utilizando a inovação seria possível.

O mosquito Aedes aegypti é conhecido por se adaptar aos ambientes. Essa adaptação também pode ocorrer nessa questão da reprodução?

Não. Em 12 meses a gente não observou esse tipo de adaptação simplesmente porque a fêmea segue o curso natural. Ela é quem se alimenta de sangue porque ela tem necessidade ter um maior aporte nutricional por causa da postura de ovos. A gente não percebeu nenhuma modificação no ambiente. Eu reitero que não tem uma modificação genética e sim um processo químico de esterilização do mosquito, e isso é importantíssimo, porque se a gente tivesse trabalhando com alguma modificação genética, a gente não consegue controlar o que que vai ser modificado geneticamente, e isso pode ter outros desdobramentos não conhecidos e isso sim poderia ser impactante na natureza. Como a gente está trabalhando o processo químico, não se observou nenhuma modificação. Isso também é monitorado constantemente com as ovitrampas. Depois dessa captura a gente monitora a cada semana e quando tem alguma larva ali a gente analisa se ela veio de um mosquito selvagem ou de um mosquito produzido ali no laboratório. Essa é uma forma de controlar também essas possíveis modificações não desejadas.

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