Desde que uma empresa privada, a SpaceX - do bilionário Elon Musk, anunciou que vai lançar dois astronautas da Nasa (Agência Espacial Norte-americana) à Lua em 2022, a possibilidade de visualizar o "pálido ponto azul" de longe em viagens tripuladas passou a ganhar mais espaço nas discussões acerca do futuro. Entretanto, nesta semana, o tema foi deixado para trás por outro assunto que intriga a humanidade há muito mais tempo: a possibilidade de existir vida em outros planetas.

Imagem ilustrativa da imagem Cientista prevê viagem interplanetária em dez anos
| Foto: iStock

Ao mesmo tempo em que correram pelo mundo novas imagens de um Brasil em chamas em um 2020 que ainda aguarda a descoberta da vacina contra a Covid-19, uma publicação científica revelou que o planeta Vênus pode ter muito mais em comum com a Terra do que já se podia afirmar até os dias de hoje. Além de ter tamanho e idade semelhantes, o que lhe permite ser chamado de planeta "gêmeo" da Terra, Vênus passou a dar, também, indícios de que pode abrigar seres vivos, como apontam os estudos da equipe da cientista Jane Greaves, da Universidade de Cardiff (País de Gales).

A divulgação na revista "Nature Astronomy" da presença da fosfina na atmosfera de Vênus é um forte indício de que existe atividade biológica no planeta e torna atual uma previsão feita no final da década de 1960 pelo astrofísico Carl Sagan, autor da clássica série "Cosmos" (1980) e do livro "Pálido Ponto Azul: Uma Visão do Futuro do Homem no Espaço" (1994). Além de narrar a fragilidade do nosso planeta, registrado pela sonda Voyager 1 a seis bilhões de quilômetros de distância, Sagan também foi responsável por dar uma das mais didáticas lições acerca do aparecimento da vida na Terra. Com o calendário espacial, o cientista lembrou que se a linha do tempo desde o surgimento do universo fosse resumida a um ano, os primeiros microorganismos vivos na Terra teriam surgido apenas no dia 15 de setembro. Com cada dia representando 40 milhões de anos e cada mês mais de um bilhão, a humanidade teria surgido pouco depois do "almoço" do dia 31 de dezembro.

Tratar a ciência de forma prática, didática e objetiva é uma das maiores aspirações do pesquisador do Blue Marble Space Institute of Science, da Nasa, Ivan Gláucio Paulino Lima. Ex-aluno da rede pública de ensino do estado de São Paulo e ex-aluno da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Lima defendeu sua tese de mestrado na estadual londrinense, onde também foi professor colaborador de Bioquímica por seis meses. Em entrevista à FOLHA por e-mail, Lima discorreu sobre temas de seu cotidiano e contribuiu com previsões sobre os avanços da próxima década no sucesso de missões espaciais.

Como se deu a sua ida à Nasa e como é a sua rotina de trabalho hoje em dia?

Quando eu fui defender a tese de doutorado na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), fiquei sabendo que a Dra. Lynn Rothschild, da Nasa, estaria no Brasil e como a data do evento era bem próxima à data da minha defesa, eu a convidei para fazer parte da banca examinadora. Ela gostou do tema e propus um projeto de pós-doutorado e submeti para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Com a aprovação da bolsa de pós-doutorado dei início às minhas pesquisas aqui na Nasa em agosto de 2011, como pesquisador de pós-doutorado. A Nasa faz contratos com outras empresas de diversos setores, inclusive o setor de pesquisa. Isso possibilita a contratação de pesquisadores estrangeiros para trabalharem diretamente em projetos da agência. Após completar o meu pós-doutorado, eu voltei para o Brasil, mas logo fui chamado para trabalhar na missão espacial PowerCell, a bordo do satélite Eu:CROPIS, inicialmente contratado pela Universities Space Research Association e posteriormente pelo Blue Marble Space Institute of Science. Minha rotina de trabalho hoje em dia é predominantemente remota, processando e analisando os dados do satélite, o que facilita muito nessa época de pandemia e me permite trabalhar de qualquer lugar. A cada seis meses eu preciso processar e analisar no laboratório as réplicas dos experimentos que são mantidas aqui. Por isso estou aqui na Califórnia para finalizar a última bateria de testes e estou aguardando o resultado de projetos de astrobiologia, biologia sintética e exploração espacial para serem desenvolvidos a partir de 2021.

Qual é a sua hipótese sobre os processos biológicos e geológicos que garantiram a existência da fosfina nas nuvens de Vênus?

Os argumentos apresentados nesse artigo me parecem bastante plausíveis guardadas algumas barreiras aparentemente intransponíveis pelo nosso conhecimento atual sobre biologia. Na minha opinião a principal delas seria a capacidade das moléculas orgânicas de seres vivos, como os conhecemos, resistirem ao ataque do ácido sulfúrico, presente em abundância sob a forma de neblina na atmosfera de Vênus. Outra barreira seria o fato de o ambiente lá ser desidratante, anóxico e exposto à alta radiação ultravioleta. Entretanto, a exploração de ambientes extremos na Terra já surpreendeu os cientistas em diversas oportunidades. Por exemplo, até os anos 1960, pensava-se que era impossível organismos vivos existirem em fontes hidrotermais com temperaturas superiores a 70 ºC ou 80 ºC. Hoje em dia inúmeras espécies de micro-organismos hipertermofílicos foram descobertos em ambientes aqui na Terra com temperaturas que passam dos 100 ºC. Se o planeta Vênus reuniu condições de habitabilidade durante seus primeiros três bilhões de anos, conforme indica este estudo, isso daria bastante tempo para a vida surgir, evoluir e se refugiar nas nuvens altas da atmosfera após a grande alteração climática global que transformou o planeta, uns 700 milhões de anos atrás. Vale lembrar que os primeiros três bilhões de anos da história da vida aqui na Terra foram dominados por formas microscópicas de seres vivos.

O que explica essa diferença de quase 50 anos entre os primeiros apontamentos de Carl Sagan e as revelações de 2020?

Carl Sagan era, em muitos aspectos, um homem à frente do seu tempo. Sua descoberta sobre o efeito estufa em Vênus mobilizou, nas últimas décadas, políticas ambientais internacionais de controle do aquecimento global aqui na Terra, permitindo à civilização humana uma nova chance a cada ano de estender um pouco mais sua presença neste planeta. O fato de ter demorado tanto tempo para uma descoberta tão importante como essa no planeta Vênus, na minha opinião, se deveu basicamente a dois fatores. Primeiro, por ser um planeta venenoso e corrosivo, a comunidade científica acabou subestimando o seu potencial por muito tempo e acabou minimizando esforços de observação e exploração deste ambiente em particular, que é a região dos 55 km de altitude em Vênus. E o segundo é a evolução do conhecimento em termos da caracterização de moléculas que pudessem ser consideradas bioassinaturas e o desenvolvimento tecnológico que foram necessários para orquestrar uma descoberta como essa.

Como essa descoberta vem impactando a corrida do setor privado pelo lançamento de novas sondas?

Eu acho que ainda é cedo para falar em corrida do setor privado para o lançamento de sondas ao planeta Vênus. Mas é possível que isso ocorra num futuro próximo. De fato, uma empresa chamada Rocket Labs já vinha desenvolvendo uma pequena missão e agora querem mandar ainda mais. No setor governamental, a Nasa também já vinha considerando uma nova missão ao planeta Vênus e pelo menos duas propostas chegaram às fases finais de avaliação. Caso seja selecionada em abril, a missão Veritas poderá estudar a geologia do planeta. Já a missão Davinci poderá estudar a atmosfera do planeta. Na minha opinião as duas ganham automaticamente papel de extrema relevância frente a essa descoberta.

Em qual estágio estão as pesquisas em relação às barreiras impostas pela radiação cósmica em busca de habitarmos outros planetas?

Estamos avançando, mais muito lentamente, porque depende de muitos experimentos de laboratório para testar medicamentos, substâncias e materiais que possam ajudar nesse sentido. Com o que temos hoje é simplesmente impossível uma missão tripulada bem sucedida ao planeta Marte, por exemplo, justamente pelos efeitos da radiação no corpo humano. Mas eu acredito que dentro dos próximos dez anos já teremos uma solução para o problema da radiação, inclusive com aplicações aqui na Terra como em radioterapia, na indústria de alimentos e farmacêutica, com os antioxidantes, e na indústria de cosméticos, que fazem uso de filtro solar.

E sobre chegarmos ao estágio em que o aparecimento do câncer será apenas parte do passado?

As novas tecnologias de diagnóstico precoce e novos tratamentos nos levam a vislumbrar um presente onde o câncer seja passado. Mas isso vai depender muito do desenvolvimento de um campo chamado terapia gênica. E aqui novamente o meu palpite otimista coloca um prazo em torno de dez anos.

O sr. cita o astrofísico Neil DeGrasse Tyson que aborda a importância da ciência impactar os grandes líderes assim como faz com as crianças. Como não perder as esperanças enquanto atravessamos esse período de tanto negacionismo por parte de governos?

Eu acho que o conhecimento, o desenvolvimento científico e a tecnologia resultante desse processo têm um papel fundamental para a diminuição da desigualdade. Ao mesmo tempo, são fundamentais para promover a integração das diversidades, enriquecendo a cultura humana e nos tornando mais preparados para enfrentar os desafios sem precedentes que temos pela frente, como o aquecimento global e o acesso aos recursos naturais e artificiais. Entretanto, o cenário social atual é catastrófico. A sociedade vive um momento de extremo distanciamento do processo científico. Do mesmo modo que temos acesso à tecnologia avançada na palma de nossas mãos, temos muita dificuldade em compreender os fundamentos dessas tecnologias e isso acaba afetando nossa capacidade de julgamento até o nível do bom senso. Fenômenos sociais negacionistas como o terraplanismo, as pseudociências e as teorias da conspiração são sintomas de uma sociedade culturalmente agonizante, que clama por um novo iluminismo, algo que possa afastar a nuvem carregada de gases tóxicos prestes a desabar sobre nossas cabeças.

Os cientistas, que representam uma boa parte da sociedade, deveriam ser financiados não apenas para desenvolver suas pesquisas, mas 50% para divulgá-las para a sociedade de maneira simples, prática e inteligível ao grande público. Investir apenas em pesquisa acaba aumentando esse distanciamento. É urgente que todos os líderes públicos sejam minimamente cientificamente letrados. E nós, cientistas, como membros da sociedade, temos um papel importante nesse processo. Precisamos de mais representatividade no desenvolvimento de políticas públicas. Eu acredito que se conseguirmos aumentar a aproximação entre a sociedade e o processo científico estaremos no caminho certo para melhor compreender as grandes questões da humanidade.