A notícia de que em Hong Kong um homem saudável na casa dos 30 anos foi infectado novamente com o novo coronavírus quatro meses e meio após sua primeira infecção gerou preocupação na população, já que ainda não há uma vacina comprovadamente eficaz e tampouco há medicamentos que curem a Covid-19. Segundo o artigo produzido por cientistas da Universidade de Hong Kong, o homem passou 14 dias no hospital antes de se recuperar do vírus. Depois, viajou para a Europa e, após um teste de saliva durante uma triagem no aeroporto, apresentou resultado positivo para o vírus Sars-Cov-2 uma segunda vez. Até então as as investigações sobre possíveis casos de reinfecção apontavam que ocorriam resultados de falsos positivos na primeira ou segunda amostra, ou amostras contaminadas ou detecção de partículas que podem permanecer no organismos por até 40 dias.

Laboratório de Análises Clínicas da UEL realiza a testagem de casos suspeitos de Covid-19.
Laboratório de Análises Clínicas da UEL realiza a testagem de casos suspeitos de Covid-19. | Foto: Divulgação/AEN

A reportagem da Folha conversou sobre o caso com a médica infectologista do Hospital Universitário (HU) da UEL, Zuleica Tano, que participa do grupo de trabalho responsável pelo plano de contingência para o coronavírus do hospital. Ela acredita que esse registro de reinfecção pode derrubar a tese de imunidade de rebanho; que o momento ainda não é propício para relaxar em relação às aglomerações; e que a reinfecção pode ser um alerta para isso. A professora enviou um material em que há a descrição de amostras de 4.868 genomas coletados entre dezembro do ano passado e agosto deste ano, em um site chamado gisaid0.org.

O relato de que houve uma pessoa que sofreu infecção duas vezes pelo Sars-Cov-2 é preocupante. O que a senhora pode dizer sobre o caso?

Esse paciente viajou para a Espanha em agosto e quando retornou foi coletado novo swab e novos exames foram feitos. Como deu positivo foram realizados exames laboratoriais e foram isolados esses mesmos vírus. Alguns materiais genéticos ficam no corpo por muito tempo, mas isso não quer dizer que eles ficam ativos. Eles podem estar lá sem causar dano algum. Nesse paciente fizeram sequenciamento do genoma desse vírus, para saber “nome e sobrenome” dele e foi constatado que os vírus do corpo dele vinham de duas linhagens diferentes.

Como elas se diferenciam?

No sequenciamento do genoma do RNA (ácido ribonucléico), quando se faz o mapeamento, há uma série de proteínas. No sequenciamento genético essas linhagens diferentes mudam. Para constatar isso não adianta só fazer o exame PCR, que diz apenas se deu positivo ou negativo. Se fizer um exame de PCR hoje e outro em setembro pode vir positivo em novo swab, mas ainda pode ser resquício do mesmo vírus. O que vai dizer se é diferente ou não é o sequenciamento genético. Existe um banco mundial de genomas que os pesquisadores podem alimentar enviando os exames genéticos.

A vacina pneumocócica, por exemplo, realiza a prevenção para 13 sorotipos diferentes. As vacinas que estão sendo desenvolvidas para a Sars-Cov-2 podem prever a imunização para diferentes sorotipos?

A gente está muito precoce em relação à vacina. Eu acho que primeiro precisamos ver se a vacina será eficaz. Quando a gente pensa que há vários tipos e subtipos, não que seja impossível de ser feita, mas acredito que a gente teria que vacinar todo ano, pois são milhares de subtipos nesse momento nos quais existe uma pequena diferença em cada um. Provavelmente será feita uma vacina que cobrirá a grande maioria, mas eu acho que será como a da H1N1, que precisa ser feita todo ano e que precisa ser reestudada a cada período. Muito provavelmente a vacina usará uma proteína da espícula (estrutura pontiaguda que se projeta através da superfície externa do invólucro proteico do vírus) e ela será desenvolvida especificamente para ela. Precisamos de uma vacina que seja eficaz e segura e elas já estão sendo testadas na fase 3. Só depois devemos pensar em como será feito em relação aos subtipos.

Mas o que preocupa é a questão do tempo tão curto para essa reinfecção dessa pessoa de Hong Kong. Foram pouco mais de quatro meses. Em uma vacina contra a gripe comumente se leva um ano para se vacinar novamente. Como a senhora avalia isso?

Exatamente. Nesse caso a primeira infecção foi sintomática e na segunda não teve sintomas. O exame foi coletado porque a pessoa estava retornando de outro país. Como deu positivo, ele teve respostas inflamatórias e teve alterações laboratoriais. O interessante é que na primeira infecção ele não teve IGG e IGM, que é a sorologia que é colhida para ver se teve contato com vírus e teve anticorpos. Isso se chama imunidade específica, ou seja, o exame indica se o paciente teve o linfócito que vai reconhecer esse vírus especificamente. Mas a gente tem uma coisa antes disso que se chama imunidade inata, que funciona da seguinte maneira: Os nossos anticorpos vão tentar combater qualquer coisa que entrar em contato com o nosso corpo, pode ser vírus ou bactéria. Na segunda vez que a pessoa de Hong Kong foi infectada ele teve essa imunização inata. Sabe-se disso porque não teve sintomatologia.

Muitas vacinas não curam, mas fazem com que a pessoa sofra sintomas mais amenos. Seria isso que aconteceu com essa pessoa de Hong Kong?

As vacinas são várias e um dos objetivos pode ser esse, ou pode ser não pegar de jeito algum. O objetivo da vacina é ter anticorpos para se combater aquilo que entra em contato com o corpo. A gente tem visto paciente que tem swab positivo e não vira IGG e IGM, o que é estranho. Alguns apresentam e alguns não. Talvez a gente esteja colhendo o material muito precocemente. Há estudos que mostram que há pacientes oligossintomáticos (que exibem ou se queixam de poucos sinais ou sintomas) ou assintomáticos (sem sintomas), ou seja, eles não têm feito anticorpos específicos ou nem vão ter. Talvez, em uma segunda infecção, eles possam desenvolver isso.

Isso pode gerar a chamada imunidade de rebanho? Há quem defenda que se a doença atingir 70% da comunidade é possível desenvolver uma imunidade coletiva, mas Manaus nunca passou dos 20% e está tendo queda do pico de internações. É isso o que está ocorrendo por lá?

Existe muita controvérsia sobre essa questão da imunidade de rebanho. Tem gente que fala em 20%, 30%, 50% e 70%. Esse número percentual não é exato e não sei te responder. Mas com essa confirmação da reinfecção, a imunidade de rebanho cai por terra. É difícil falar que se atingir 70% da população será possível abrir tudo. Mas se a teoria de infecção de rebanho fosse verdadeira, não teria a segunda onda de infecções em alguns países da Europa.

Existem casos de reinfecção no Brasil?

A gente tem vários outros casos sendo investigados em lugares como São Paulo e Ribeirão Preto. São cidades que reportaram alguns pacientes que podem ter se reinfectado, mas esses estudos ainda estão sendo realizados. Ainda vão mapear o genoma destes vírus e se é o Sars-Cov-2, se é de linhagem diferente da primeira infecção ou se são vírus diferentes.

Anualmente se faz vacinas contra diferentes cepas do H1N1, mas a impressão é que para o Sars-Cov-2 isso vai levar mais do que um ano. Por que isso?

O vírus da influenza é antigo e já foi sequenciado faz tempo. Por isso foi muito mais rápido de fazer vacina. Sobre o Sars-Cov-2 a gente nem sabe se a vacina fará imunidade ou não. É um caminho longo e se essa vacina sair no próximo ano vai ser um ganho maravilhoso. A gente não sabe nem se esse vírus sofre mutação ou não. Pode ser que a cada vez que ele mude de país ele se modifique um pouco. É um vírus diferente e por isso é tão difícil. Mas creio que logo a gente vá conseguir. Temos boas expectativas.

A senhora trabalhou muito com o vírus HIV. O que se aprendeu com ele e pode ser utilizado no combate ao Sars-Cov-2?

São vírus muito diferentes. Não dá para fazer contraponto entre os dois. Talvez o H1N1 seja uma comparação mais próxima. Os dois são vírus respiratórios, embora a taxa de transmissão da H1N1 seja muito menor e quando ele surgiu já havia medicação que podia ser utilizada, o oseltamivir, que é uma coisa que a gente não tem para a Covid-19. Já a pandemia por Sars-Cov-2, sinceramente, em janeiro eu não acreditava que ia chegar com tanta força. Agora estou vendo que a transmissão é extremamente eficiente, principalmente em contatos familiares e próximos.

A transmissão continua alta?

Em relação à taxa de transmissão, a da Covid-19 só não é maior do que a do sarampo. O importante é não aglomerar, não fazer festas. Isso as pessoas têm dificuldades de entender. A questão da aglomeração é mais importante que o isolamento em si. Quando há aglomeração, mesmo que seja com pessoas que se conhece e não são do mesmo grupo familiar, há possibilidade da pessoa ser assintomática e transmitir o vírus. A grande maioria das pessoas infectadas irá evoluir bem, porém aqueles mais idosos ou com alguma imunossupressão podem evoluir muito mal. Infelizmente a gente não tem medicação eficaz ou vacina neste momento. Se eu puder deixar uma mensagem, diria às pessoas que acham que a situação em Londrina está tranquila que estamos tendo cada dia mais infecções e dentro de casa. No HU há famílias inteiras internadas. As pessoas acham que já está tudo bem e que não precisam se proteger, mas talvez essa reinfecção tenha vindo como alerta.


E como está a situação de Londrina?

O HU atende não só Londrina, mas toda a macrorregião Norte. Ainda temos muitas pessoas positivando. Apesar dos números estarem estáveis, eles não estão caindo. A gente precisa de leitos e não só para Londrina, mas para todo o entorno. Temos muitos pacientes chegando ainda e o ideal seria que os casos estivessem em queda, mas isso ainda não está acontecendo.