As cenas de apoiadores de Donald Trump invadindo o Capitólio, sede do Congresso americano, para tentar interromper a oficialização da vitória eleitoral de Joe Biden como novo presidente dos Estados Unidos, registradas em 6 de janeiro, demonstraram que a transição entre as duas administrações já ficou para a história como uma das mais turbulentas desde a fundação do país.

O professor Carlos Eduardo Lins da Silva qualificou o movimento de apoiadores de Trump como caótico e classificou o desafio de Biden para administrar o País como o mais difícil da história dos EUA.
O professor Carlos Eduardo Lins da Silva qualificou o movimento de apoiadores de Trump como caótico e classificou o desafio de Biden para administrar o País como o mais difícil da história dos EUA. | Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Para o professor Carlos Eduardo Lins da Silva, do Programa Avançado em Comunicação e Jornalismo do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa), em São Paulo, as políticas administrativas norte-americanas, consideradas as mais estáveis do mundo, deverão ser refeitas por Biden em quase todas as áreas, porque foram "destruídas" pela administração Trump.

Lins ainda qualificou o movimento de apoiadores de Trump como caótico e classificou o desafio de Biden como o mais difícil da história dos EUA. "A invasão do Capitólio é um incidente dramático e foi a primeira tentativa de golpe na história dos EUA", destaca o membro do Centro Internacional para Acadêmicos Woodrow Wilson, em Washington, e integrante do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional do Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo). Embora o Congresso tenha aprovado o impedimento de Trump pela segunda vez, ele não acredita que o Senado aprovará isso.

Como o senhor avalia o episódio da invasão do Capitólio?

Na minha avaliação foi muito grave. Existe um debate entre professores se aquela invasão constituiu uma tentativa de golpe ou não. Na minha opinião, sim. A invasão do Capitólio é um incidente dramático e foi a primeira tentativa de golpe na história dos EUA de que se tem notícia. É um fato gravíssimo e que está tendo uma repercussão imensa. É mais um empecilho no processo de transição e o mais atabalhoado e difícil da história recente dos Estados Unidos. Normalmente a transição entre um presidente e outro, mesmo quando é da oposição, é organizada e tranquila. Normalmente em cada ministério e em cada departamento as informações são transmitidas do governo que está saindo para o governo que vai entrar e tudo ocorre de forma tranquila e ordenada. Há uma série de procedimentos adotados, como constituir equipes para trabalhar em conjunto. Mas agora a gente vê o contrário disso. Inclusive o presidente Joe Biden se queixou várias vezes de estar sendo boicotado e que as informações estão sendo sonegadas, inclusive as importantes para a Segurança Nacional, como as do Departamento de Defesa.

O ex-governador da Califórnia, o republicano Arnold Schwarzenegger, comparou o episódio da invasão do Capitólio com a Noite dos Cristais, que representa a guinada de violência na Alemanha contra os judeus. Como o senhor analisa isso?

Estamos longe do que ocorreu à Alemanha nazista. Essa comparação é muito mais retórica do que factual. Não se chegou perto do que ocorreu naquela noite. Existem similaridades entre as posições dos grupos políticos que apoiam o presidente Trump com os que apoiam as ideias fascistas, mas elas têm potência reduzida em relação ao que ocorreu em 1938, porque eu vejo hoje a situação muito mais imprevisível. Grande parte do Trumpismo é sem organização, caótico, e isso torna a análise mais difícil, porque não se sabe o que essas pessoas querem e aonde pretendem chegar. As pessoas que invadiram o Capitólio aparentemente não sabiam o que fazer quando chegaram lá. Se houvesse um movimento unido iriam diretamente destruir as cédulas do colégio eleitoral e isso teria sido um golpe, mas não havia organização para isso. O nazismo era muito mais organizado.

Uma das características da democracia é a alternância de poderes, mas desta vez essa postura tão intransigente na transição parece não ter precedentes. Ela coloca a democracia em risco?

A alternância pacífica de poderes é um dos princípios do regime democrático. Acho que a alternância de poder pacífica é uma condição essencial para a democracia. Não há dúvida nenhuma, na minha visão, de que a situação da transição do regime democrático nos EUA nunca foi tão frágil como agora. Eu receio que as coisas possam piorar muito ainda. Existe uma série de denúncias e informações que podem gerar mais violência na cidade de Washington e nas capitais dos estados antes da posse do presidente Biden. Washington vai estar em estado de fechamento, quase em toque de recolher, até a data de posse. Essa dificuldade que o presidente eleito está tendo para conseguir se organizar e assumir o poder no dia 20 é mais uma prova que de fato a democracia dos EUA está em risco como nunca esteve e nenhum governante viu. A democracia americana sempre foi um modelo para o mundo, mas a situação atual é a mais grave pela qual ela passou em toda a história americana.

Biden venceu com 81.283.485 votos (51,4%) e se tornou o mais votado da história. Mesmo assim, o país parece estar mais dividido. Como administrar isso?

Será muito difícil, mas acredito que Biden é a pessoa certa para esta missão, pelo menos pelo seu histórico. Ele sempre foi considerado um político hábil e capaz de fazer acordos durante o seu tempo no Senado e como vice-presidente da República, mas é uma tarefa realmente sem precedentes, porque a divisão dos eleitores é quase meio a meio. Mas não é só isso, porque já houve votações apertadas anteriormente. O problema não é a diferença de votos, mas o tipo de comportamento de muitos seguidores do presidente Trump, que não são democráticos e se mostram violentos, como se viu na invasão do Capitólio. Eles possuem armas e ameaçam usá-las. E uma insurreição armada é uma possibilidade concreta nos próximos dias e meses. Trump não aceita a derrota e incita os seus seguidores a fazerem o mesmo. Com isso os incentiva a comportar de forma violenta.

O Congresso aprovou o impeachment de Trump pela segunda vez, mesmo a poucos dias da posse de Biden. O senhor acha possível que o Senado aprove isso?

Eu não acredito que o Senado condene o Trump. Posso estar errado, mas eu acho que não vai acontecer. É apenas uma posição simbólica. Para acontecer precisaria da concordância do presidente e do vice-presidente. Ou pelo menos do vice, mas Mike Pence não vai fazer nada contra o Trump. Por ser uma questão de dias, não faz muita diferença do ponto de vista prático. Nancy Pelosi defende essa ideia, porque é líder da oposição e presidente da Câmara. No Senado, eu acho que o Trump vai ser absolvido, porque, mesmo diante do que aconteceu no dia 6 de janeiro, um número grande de senadores e deputados continuou tentando impedir a vitória de Biden. Os aliados de Trump aparentemente não podem ser demovidos, pelo menos por enquanto.

A agenda do Biden tem como uma das prioridades a defesa ambiental. Ele nomeou Juan Gonzalez para o cargo de diretor sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, pasta que cuida de assuntos relacionados à América Latina. Gonzalez já fez comentários em tom crítico ao Brasil em relação à condução da política ambiental por aqui. Isso afetará o Brasil?

Eu acho que a pedra de toque do Biden será a questão da mudança climática e será o ponto mais importante da política externa do governo Biden. Evidentemente isso afeta o Brasil, pois todos nós sabemos que o presidente Jair Bolsonaro critica e tem a prática sistemática, que eu acho que é intencional, de querer destruir as florestas e colocar em risco a questão do clima no Brasil. O que me assusta muito foi a reação tanto do Bolsonaro quanto do chanceler Ernesto Araújo de continuar a defender o presidente Trump, dizendo que a eleição norte-americana foi fraudada. Aparentemente eles não possuem receio de um confronto com os EUA. O governo Bolsonaro não dá sinais de que possa mudar essa orientação de hostilizar o governo que vai tomar posse no dia 20 de janeiro. Com isso o Brasil vive a situação de maior isolamento de sua história. Os principais parceiros políticos e comerciais do País estão sendo hostilizados por este governo. Argentina, Chile, União Europeia e agora os EUA. O único país de peso econômico com o qual o governo Bolsonaro mantinha relações era os EUA, sob o governo Trump, e isso vai acabar. Essa perspectiva é uma coisa muito séria.

Um dos maiores desafios da nova administração será enfrentar a questão da pandemia do novo coronavírus e seus reflexos econômicos?

Nenhum presidente da história dos EUA encontrou um país tão cheio de problemas como Biden vai enfrentar a partir do dia 20 de janeiro. O presidente Franklin Roosevelt pegou o país dilacerado na parte econômica, mas não havia uma pandemia e não havia a questão do clima. Biden vai pegar uma das piores situações da história. A exigência da agenda que ele vai ter que cumprir é simplesmente hercúlea. Vai ser extremamente difícil para ele conseguir ser bem sucedido. Mas, de novo, é uma pessoa que tem condições de tentar fazer frente a essas condições tão dramáticas que ele vai enfrentar.