Se a revelação de abusos e violações do devido processo legal cometidos no decurso da Operação Lava Jato apontou para o possível viés político na ação de agentes públicos envolvidos no combate à corrupção, a comprovação de que profissionais de grandes veículos de imprensa desenvolveram um relacionamento, no mínimo, questionável com o grupo liderado por Deltan Dallagnol - como mostram os diálogos vazados - representa mais uma amarga lição com a qual o jornalismo brasileiro terá que acertar as contas no futuro. Mesmo tendo chegado ao fim com um expressivo volume de recursos devolvidos e criminosos do colarinho branco condenados, a operação também será lembrada pela instrumentalização da pauta jornalística, com raras exceções, e práticas condenáveis pelo código de ética da profissão.

Imagem ilustrativa da imagem 'Ao invés de cobrir, boa parte da mídia deu cobertura à Lava Jato'

O caso em que um repórter atuou como coautor de uma nota a ser enviada à imprensa pelo MPF (Ministério Público Federal), o papel exercido por assessores de imprensa, é um deles. Outra prática que ficou evidente foi a da anexação de vídeos de delações premiadas em processos públicos de forma combinada para que parecesse mais um “triunfo” de uma equipe de jornalistas antenada. Essas e outras situações foram reveladas na série de reportagens que ficou conhecida como "Vaza Jato", do site The Intercept Brasil.

Enquanto alguns deslizes éticos que marcaram a simbiose entre a Lava Jato e algumas redações já vêm servindo como farto material para professores e estudantes de jornalismo, o tema central que resta à sociedade discutir é a crise que a atividade, fundamental para a defesa da democracia, atravessa e que não é exclusividade do Brasil. Com o fechamento de 1,8 mil jornais nos Estados Unidos nos primeiros 14 anos do século XXI, o termo "deserto de notícias" passou a definir localidades distantes de grandes centros urbanos, verdadeiros "oásis" para a corrupção e outros desmandos. Já no País da Lava Jato relatórios apontam para o fechamento de 7,8 mil postos de trabalho nas empresas de mídia entre 2012 e 2018.

Para o pesquisador Rogério Christofoletti, coordenador do programa de Doutorado em Jornalismo da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), esta é a maior crise que a atividade já enfrentou em toda a sua história e não pode ser analisada apenas do ponto de vista econômico em razão da ruína do seu modelo de negócio. Christofoletti já atuou como jornalista e há mais de dez anos coordena o objETHOS (Observatório de Ética Jornalística). Além de desenvolver um sólido trabalho de pesquisa nas áreas de ética jornalística e transparência, ele também é o autor do livro “A Crise do Jornalismo tem Solução”?. Em entrevista à FOLHA, avalia, também, a cobertura da Lava Jato.

Quais são as particularidades da crise do jornalismo brasileiro neste contexto mundial de descentralização dos meios e fluxos de comunicação?

Penso que a crise do jornalismo tem componentes extranacionais, como a chegada das grandes plataformas de comunicação que acabam sequestrando um pouco do processo de distribuição dos conteúdos. Isso antes ficava restrito aos meios de comunicação. Mas, do ponto de vista brasileiro, temos algumas particularidades. A primeira é que temos um sistema de comunicação muito oligopolizado, concentrado, e isso faz com que as condições de competição dentro do grande mercado brasileiro fiquem prejudicadas porque os médios e pequenos veículos têm muito mais dificuldade de chegar aos seus públicos. Outro aspecto é que os nossos marcos legais dentro da área da regulação da comunicação no Brasil estão bastante atrasados. O Código Brasileiro de Radiodifusão é de 1962 e, embora já tenhamos um Marco Civil da Internet, não temos, do ponto de vista dos poderes Legislativo e Executivo, boa vontade para abrir o mercado brasileiro. Você junta um mercado que pune os pequenos e médios, players internacionais como Google e Facebook, você coloca também um outro ingrediente nessa fórmula, as pessoas com a capacidade de se comunicarem sem intermediários, tudo isso, de alguma maneira, vai impactar no consumo de notícias no Brasil.

O sr. comenta que o jornalismo passa por vários tipos de crises: econômica, de credibilidade, de ética e de governança. Qual é a mais grave e e é possível sairmos de alguma primeiro, digamos assim?

A crise do jornalismo hoje é inédita justamente porque ela está imbricada nestes quatro tipos de crise. Elas estão todas amarradas, quer dizer, não dá pra puxar um fio e resolver alguma primeiro. Veja que, por exemplo, resolver uma crise ética, em responder qual é o papel do jornalismo, tem a ver com como ele vai se relacionar com seu público e também com o que é fazer jornalismo hoje. Isso tem a ver com viabilizar a atividade jornalística e a sua credibilidade. Se o jornalismo não está muito crente daquilo que ele pode fazer, ele não consegue se relacionar de uma maneira mais franca e horizontalizada com o seu público e também não consegue fazer com que ele reverta uma crise de confiabilidade. Esta é a dificuldade, não conseguimos resolver uma questão de cada vez. Elas precisarão ser enfrentadas de uma maneira conjunta. Como? Precisamos estabelecer novos pactos com o nosso público, buscar uma transparência maior e uma forma horizontalizada de tratar com esse público. Ao mesmo tempo, precisamos, mesmo que estejamos com problemas sérios de financiamento, investir na atividade. Sei que, em um momento de crise, o que a maioria das pessoas faz é cortar custos. Sim, precisamos racionalizar recursos, mas, também, investir porque assim demonstramos para o mercado que acreditamos naquela atividade. Não é fácil mesmo lidar com uma crise como essa, porque ela é inédita no jornalismo.

A crise do jornalismo também pode estar atrelada a uma crise de leitura e, também, a um perfil de parte da população que quer resistir em aceitar os fatos por conta dessa polarização política? Qual é o papel do público em todo este contexto?

O público tem um papel crucial dentro de um processo de comunicação porque não é apenas um receptáculo das informações, mas participa, ajuda a corrigir e calibrar algumas coberturas, nos chama a atenção para algumas coisas que não são percebidas. Claro que há uma parcela que, por razões diversas, entre elas um fanatismo ideológico, tem atentado contra a credibilidade dos veículos de comunicação. É claro que o jornalismo tem problemas, é imperfeito. Ele é uma prática feita por humanos, para humanos, com humanos e pode produzir erros. Entretanto, não é acabando com o jornalismo ou deixando de consumir informações jornalísticas que vamos melhorar o jornalismo. O público precisa, de alguma maneira, ser seduzido e convencido de que o jornalismo é um instrumento cidadão para não só saber como as coisas estão acontecendo na sociedade, denunciar abusos, apontar práticas que são ocultas, mas, também, para aprimorar a cidadania e a democracia. Então, a ultra polarização é um resultado desse momento de rede sociais dominando o cenário, de sistemas automatizados, robôs mesmo, muitas vezes interferindo no debate público via redes sociais. Algoritmos não transparentes das grandes plataformas que, muitas vezes, inflam algumas pautas e clamores sociais que não têm tanta importância. É esse cenário caótico que estamos enfrentando no momento e o jornalismo é um instrumento da sociedade para tentar separar o joio do trigo e entender aquilo que é importante para se buscar um entendimento social, soluções coletivas para problemas que são coletivos.

Nesta perspectiva, qual foi o papel da cobertura da Operação Lava Jato?

Eu analiso que, fazendo um jogo de palavras, de uma maneira geral, boa parte da grande mídia, ao invés de cobrir a Lava Jato, deu cobertura à Lava Jato. O que eu quero dizer com isso é que na ânsia de fazer a cobertura de uma importante atividade de combate à corrupção, a grande mídia fechou os olhos ou fez vista grossa para um conjunto de abusos de liberdade, prisões abusivas, atropelamento de reputações, ações espetaculosas que violavam direitos, ações seletivas e por aí vai. Acho que, agora, temos mais condições de fazer ajustes nas coberturas. Claro que, desde o começo, houve veículos que tiveram uma postura mais crítica, mais distante da Lava Jato. É importante que se lembre que a operação foi um importante esforço para se combater a corrupção. Mas, não se recrimina a corrupção, que é um mal endêmico não só da sociedade brasileira, com uma única operação. Isso deve ser levado a cabo por diversos governos, quer dizer, precisamos mudar certas culturas políticas. Agora, o que percebemos hoje com muita nitidez, com o vazamento de trocas de mensagens entre membros da Lava Jato é que houve sim uma série de abusos e desvios. Claro que o combate à corrupção deve ser uma prioridade nacional, mas não a primeira prioridade. O principal problema social que temos no Brasil não é a corrupção, é a desigualdade social, é um país altamente rico e extremamente injusto e que precisa enfrentar isso historicamente. O combate à corrupção não está desligado da desigualdade, mas a desigualdade precisa ser enfrentada. Então acho que temos mais condições hoje de ajustar a cobertura jornalística da Lava Jato e ter uma ponderação melhor da sociedade com relação aos instrumentos que temos para combater a corrupção.

Por parte dos colunistas houve ainda mais 'espetacularização' ou a ponderação esperada?

Alguns contribuem sim para uma certa confusão informativa. Agora, é importante lembrar que a opinião está prevista dentro do jornalismo, o choque das opiniões está previsto, dentro de parâmetros razoáveis de civilidade e legalidade. Eu não posso simplesmente usar a liberdade de imprensa ou de opinião para incitar ao ódio, ao crime, levar ao divisionismo do País. A liberdade pressupõe responsabilidade, que tenhamos uma certa dosagem porque a minha liberdade não pode colidir contra o interesse e o direito das outras pessoas. É claro que algumas opiniões, às vezes, acabam incitando alguns grupos mais extremos a atitudes que não são cidadãs, isso faz parte de um certo jogo. A liberdade de expressão, de imprensa e a imunidade parlamentar não são direitos absolutos, precisam ser sempre dosadas dentro do sistema de freios e contrapesos da democracia para salvar aquilo que é mais importante, que é o direito coletivo em detrimento de um direito individual.

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Folha de Londrina · PONTO DE VISTA | O jornalismo está em crise?