No dia 16 de outubro de 2007, a FOLHA noticiava que a situação de pobreza vivenciada por boa parte dos moradores da pequena São Jerônimo da Serra (80 km ao sul de Cornélio Procópio) havia motivado a visita da então ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Márcia Lopes, ao município. À época, mais da metade da população vivia em condições precárias, isso se considerado o número de famílias que já recebiam o auxílio do Programa Bolsa Família (1.352) somado à parcela que se enquadrava nos critérios do programa e considerando, em média, quatro pessoas por família.

Imagem ilustrativa da imagem 'A fome pode empurrar a população a uma ciranda social muito perversa'
| Foto: Diego Herculano/Folhapress

Enquanto isso, a fala de um morador presente na narrativa do repórter Widson Schwartz denunciava um pensamento recorrente acerca da política assistencialista criada em 2003: a de que o acesso ao programa fazia com que o beneficiado deixasse de procurar um emprego.

Mais de 12 anos depois, em 2019, a radiografia social do pequeno município pouco sofreu alterações, assim como centenas de outros municípios que não conseguiram encontrar suas vocações para prosperar e gerar empregos.

É neste mesmo período que, segundo a FAO (Food and Agriculture Administration), braço da ONU (Organização para as Nações Unidas) voltada à alimentação, o combate à fome no Brasil ficou estagnado, mas "explodiu" no último quadriênio. A parcela de pessoas em situação de insegurança alimentar pulou de menos de 5,2 milhões, em 2017, para 13 milhões de brasileiros em 2019. Em nível global, a entidade identificou 870 milhões de pessoas em situação de subnutrição até 2018.

Mais recentemente, quando o auxílio emergencial deixou de chegar ao bolso da população mais pobre, em dezembro de 2020, 12,8% dos brasileiros passaram a viver com menos de R$ 246 por mês, segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Covid-19, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O cálculo apontou para quase 17 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza no País.

Somente ao longo desta semana, após idas e vindas da equipe econômica do ministro Paulo Guedes e as tratativas para aumentar a faixa populacional atendida pelo Bolsa Família ou liberar uma nova rodada do auxílio emergencial, uma estratégia parece estar sendo desenhada. Isso sem mesmo o orçamento do ano estar aprovado pelo Congresso.

Para repercutir a situação das famílias do Norte Pioneiro, a FOLHA convidou o pesquisador e docente da UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná), Pedro Henrique Carnevalli Fernandes. Doutor em Geografia pela UEM (Universidade Estadual de Maringá), Fernandes publicou ao lado da também professora na instituição Vanessa Maria Ludka, o artigo "Fome, Pobreza e o Programa Bolsa Família no Norte Pioneiro do Estado do Paraná". O artigo busca comparar os dados e avançar nos estudos sobre a geografia da fome no país a partir de um referencial teórico cujo pontapé inicial foi dado por Josué de Castro, ainda na década 1930, e vem sendo muito bem representado por Ludka. "A professora é uma das principais referências nos estudos da chamada geografia da fome, dentro da geografia moderna", avaliou Fernandes.

Doutora em Geografia pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), Ludka passou a desenvolver a curiosidade pelo fenômeno da fome na região a partir de conversas nos corredores da instituição, localizada em Cornélio Procópio. E, após fazer o levantamento dos dados e identificar incoerências, a dupla de pesquisadores pretende aprofundar as pesquisas para identificar uma nova radiografia social, desta vez pós-pandêmica e mais individualizada em cada município.

À FOLHA, Fernandes reafirmou que a pobreza e a fome "são fenômenos sociais mundiais tão antigos quanto o ideal pela busca de uma sociedade equitativa" e disse concordar com Josué de Castro ao salientar que o fenômeno "é produto artificial de conjunturas econômicas defeituosas, da criação humana e, portanto, capaz de ser eliminado pela vontade criadora do homem", escreveu Castro em 1966.

Qual é a sua previsão para os próximos meses nesse contexto de lentidão na retomada da liberação do auxílio aos mais pobres?

É preciso sempre repetir: a fome não espera! É evidente que o auxílio-emergencial, embora tenha essa característica muito voltada para este período de pandemia, acabou sendo um complemento na possibilidade de alimentação destas pessoas. Falar que ele é indispensável me parece consensual para quem estuda o assunto. Pode não ser interessante para aqueles que caminham por outras ideologias. Mas um programa como o Bolsa Família, que tem até problemas e coisas a melhorar, tem bastante sucesso no combate à fome. Não é um programa para as pessoas enriquecerem, isso não existe. A pessoa vai ter um dinheiro minimamente para se alimentar. Minimamente, porque hoje a cesta básica já está em valores que o que se paga em Bolsa Família muitas vezes não compra. Então o Bolsa Família e o auxílio precisam urgentemente acontecer para que essa população em pobreza não se amplie de tal forma que tenhamos um colapso social. Porque o que temos são pessoas com fome que não vão ficar em casa esperando aprovar, elas vão começar a ir para os lixões, pedir nas ruas, entrar em desespero, especialmente quem tem filhos, e essa ciranda social é muito perversa porque ela não vai esperar você achar essa comida em algum local. É evidente que precisa haver uma convergência e este despreparo não só do governo em cortar um auxílio chega a ser surpreendente porque não é possível que não exista esta percepção de que temos pessoas passando fome. São quase dois meses do ano sem nenhum tipo de reação.

No caso do Norte Pioneiro foram analisados dados de 46 municípios, o que corresponde a 5% da população do Paraná. Quais são as características em comum dentre o grupo de municípios com os maiores índices de pobreza?

O que podemos perceber de semelhança entre estes municípios é que eles têm mais dificuldade de se reinserir nessa lógica socioeconômica de geração de emprego e de renda e de ampliação da sua centralidade e, portanto, na ampliação da sua oferta de serviços e de comércio e Indústria também. Isso é de maneira geral.

O estudo revelou que em 19 municípios parte da população em situação de extrema pobreza não tem acesso ao programa. O que explica esse quadro?

É importante sempre deixar claro que o Programa Bolsa Família acaba atuando de diversas formas. Na definição do Governo Federal ele articula o Bolsa Família em três dimensões e não apenas a entrega de um recurso financeiro. É um programa de complemento de renda, acesso a direitos e que possui articulação com outras ações que estimulam o desenvolvimento das famílias para superarem a pobreza. Simplificar como um simples programa de transferência de renda é um perigo. E na hora de fazer o levantamento, percebemos que no Norte Pioneiro do estado do Paraná, 12% da população absoluta vive com o programa, mas as particularidades foram surpreendentes. Temos alguns grupos de resultados. Estes 19 municípios, ou seja, 40% da população do Norte Pioneiro, eles têm população vivendo do Bolsa Família inferior à população em situação de pobreza. Isso é interessante porque demonstra que precisamos entender por que existem pessoas nessa situação e que não são contempladas. Não temos respostas diretas, mas hipóteses. Uma pode ser a diferença temporal dos dados, podemos ter população que deixou de fazer parte da situação de pobreza e de receber o auxílio e que não aparece no dado atualizado. Outra hipótese é o acesso à informação. Muitos moradores podem não ter a informação de que eles têm direito a um benefício. Temos o caso de São Jerônimo da Serra que é o mais preocupante, com 17% das pessoas em situação de pobreza que não são contempladas. É o mais elevado do Norte Pioneiro. Falta informação ou temos apenas defasagem dos dados?

Quais são outros exemplos de incoerências encontradas?

Outros municípios podem enfrentar um processo reverso. Santa Amélia, por exemplo, é a maior taxa do Norte Pioneiro, tem 21% dos seus moradores recebendo auxílio pelo Bolsa Família. Santa Amélia tinha, em 2010, uma taxa de pobreza de sua população de 11%, ou seja, 10% de diferença. Então se São Jerônimo pode ter diminuído a sua taxa de pobreza, Santa Amélia pode ter aumentado. Mas usamos a palavra ‘incoerência’ para entender o fenômeno. E qual é a incoerência? É que vivemos em um dos estados mais ricos do Brasil e podemos ponderar que o Norte do Paraná é uma região desenvolvida. E, dentro desta perspectiva, temos pessoas com fome e em situação de pobreza. Ou temos dados defasados ou temos pessoas recebendo o benefício sem ter o direito. Então encontramos as seguintes situações: 60% dos municípios têm população vivendo com o Bolsa Família superior à população em situação de pobreza. Isso quer dizer que tem mais gente recebendo do que pessoas em situação de pobreza. Dentre estes 27 municípios, destacamos cinco que gostaríamos de visitar, que são Nova América da Colina, Cambará, Santa Amélia, Figueira e Ribeirão do Pinhal. Todos têm diferença de 8%, é uma inconsistência que precisamos entender.

Por um bom tempo o programa foi comparado como uma “esmola” ao pobre e agora com a pandemia ficou evidente que é o único meio de sobrevivência de muita gente. A sua previsão é mesmo esta, de que uma nova faixa populacional vá, digamos, 'migrar' para o programa também aqui na região?

Se olharmos a essência do Bolsa Família é um programa que beneficia pessoas que têm uma renda mensal entre zero e R$ 178, então não me parece que seja um benefício sem sentido, pelo contrário. Deveria se ampliar porque sabemos que ele não vai conseguir comprar uma cesta básica, é só acompanhar os preços. E com relação ao contexto atual, temos que trabalhar com hipóteses e não correr o risco de fazer profecias. Mas, quando olhamos para os dados da FAO, que demonstraram que entre 2010 e 2019 houve um aumento significativo de pessoas famintas no Brasil e temos um contexto de pandemia em que tem se constatado uma ampliação na desigualdade econômica, tudo leva a crer que no Norte Pioneiro teremos pessoas que vão buscar o Bolsa Família. Sabemos que nestes processos de crise existem pessoas que ampliam a sua renda, mas a principal parcela, a base da população, perde renda e acesso aos serviços e isso influencia na taxa de pobreza.

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Folha de Londrina · ENTREVISTA | A fome no norte do Paraná