Curitiba - Um ano após a eleição presidencial mais polarizada da história, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já deu várias sinalizações de políticas opostas às de seu antecessor, mas a dependência do Legislativo não parece ter mudado. A recente demissão da presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), substituída por um nome ligado a Arthur Lira (PP-AL), mostrou novamente a força do presidente da Câmara dos Deputados e do chamado centrão. Antes da mudança na CEF, Lula já havia cedido o Ministério dos Esportes para o PP e o Ministério de Portos e Aeroportos para o Republicanos.

A demissão de Rita Serrano da presidência da CEF, na quarta-feira (25), foi vista como mais um movimento do governo para tentar garantir votos na Câmara, já que seu substituto, o economista Carlos Antonio Vieira Fernandes, teria sido indicado por Lira. Na noite do mesmo dia, a Câmara aprovou o projeto de lei que cria taxações sobre offshores e “super-ricos”, o que poderá representar um alívio em meio aos esforços do governo para tentar zerar o déficit primário no próximo ano. A estimativa é que a medida reforce o caixa em R$ 20 bilhões em 2024 e em até R$ 56 bilhões até 2026.

Considerado um tema delicado no início do governo, a taxação dos “super-ricos” (cerca de 2,5 mil investidores em fundos exclusivos com entrada mínima de R$ 10 milhões) foi aprovada com relativa folga, por 323 votos a 119. O apoio de partidos da centro-direita e do centrão foi fundamental. O PL do ex-presidente Jair Bolsonaro deu 73 votos favoráveis e somente 12 contrários; o PP e o Republicanos, que integravam a base do governo de Jair Bolsonaro, foram responsáveis por 41 e 37 votos a favor, respectivamente (dez e quatro contra). Mais ao centro, MDB e PSD também apoiaram a proposta do governo, com 29 e 36 apoios cada (foram cinco e dois votos contrários em cada partido).

VÁCUO DE PODER

Para o cientista político Eduardo Miranda, professor na Pós-Graduação da PUCPR, a concentração de poder nas mãos de Arthur Lira decorre de um vácuo criado por Bolsonaro quando era presidente. Sem uma base coesa e acuado por pedidos de impeachment, o então presidente teria cedido cada vez mais para o Legislativo em troca de relativa estabilidade. “A figura do Lira é empoderada menos por uma questão institucional e mais por um vácuo. Com os ataques e os pedidos de impeachment, o governo Bolsonaro abriu mão da agenda do presidente e acabou empoderando mais o Legislativo com as emendas do chamado orçamento secreto”.

Miranda acredita que haverá uma estabilização e que pautas ligadas à economia têm mais chances de prosperar. “Já não é mais o nível que foi com o bolsonarismo. O Lula teve que abrir mão de algumas pautas, mas agendas que até pouco tempo atrás seriam impensáveis estão passando”, afirma. “A agenda prioritária do governo vem sendo conduzida habilmente pelo Lula e pelo Haddad (Fernando Haddad, ministro da Fazenda), a pauta econômica tem sido bem recebida pelo grupo do Lira”.

MUDANÇA DISCRETA

Cientista político e professor de Departamento de Ciência Política da UFPR, Bruno Bolognese avalia que o poder conquistado por Lira decorre de uma série de pequenas mudanças feitas nos últimos anos e que dificilmente o Legislativo perderá este espaço. “É o que se chama de processo de mudança discreta. De repente há uma grande mudança, que é um acúmulo de pequenas coisas, como o orçamento impositivo (em 2015), o esvaziamento das comissões da Câmara e mudanças no regimento interno. Tenho a impressão de que não volta mais”.

Para Bolognese, o que poderá haver nos próximos anos é uma diluição desse poder entre os líderes partidários. “A tendência é que os deputados passem a depender menos da presidência da Câmara e mais das lideranças. O número de partidos na Câmara está diminuindo e os líderes terão acesso a um montante de recursos bastante significativo. No cenário anterior aos fundos eleitoral e partidário, o deputado dependia da presidência para se reeleger (via emendas ao orçamento). Ele ainda precisa de emendas, mas também conta com o dinheiro do partido e vai precisar desse dinheiro”.

Avaliação do governo tende a medir eleições municipais

Para o professor Eduardo Miranda, as eleições municipais do próximo ano estarão diretamente ligadas à avaliação do governo Lula e serão uma oportunidade para forças de centro-direita conquistarem o espaço perdido. “Vai ser uma espécie de prestação de contas da eleição passada. Há uma dificuldade para a centro-direita não-bolsonarista de se encaixar nessa polarização, ela perdeu espaço e não tem interesse em se vincular ao Bolsonaro, mas tem dificuldade para fazer a disputa com esse grupo. Quem conseguir conquistar os eleitores dessa direita mais democrática e racional vai ganhar nos municípios”.

O cientista político acredita que a extrema direita brasileiras atingiu o topo na eleição presidencial 2018, mas poderá ganhar uma sobrevida caso Donald Trump seja novamente eleito presidente dos Estados Unidos. “Ela tem força hoje, mas a tendência é de diminuição. O ápice foi em 2018 e tem a ver com a impossibilidade do Lula de concorrer. A extrema direita está trabalhando para aproveitar essa força eleitoral, mas vai depender muito da eleição americana”.

O cientista político Bruno Bolognese diz ver espaço para a sobrevivência da extrema direita, já que ela não está ligada a partidos. “Poderia haver uma conversão para uma direita mais moderada, mais econômica, mas acho muito improvável. Isso acontece quando os partidos se moderam, mas a extrema direita do Brasil não é baseada em partidos. É um pensamento que sempre teve no Brasil, o que não tinha era microfone para essas pessoas”.

Para o especialista, o discurso de Lula na semana passada, buscando aproximação com prefeitos, faz parte da estratégia para as eleições municipais. “O prefeito é um captador de votos para deputado, o que está em jogo é a certeza de que o deputado vai liberar emendas. O Lula está ciente disso, não foi uma fala desavisada, nem uma ligação direta entre o presidente e os prefeitos. Quando os prefeitos apoiaram o Bolsonaro em 2018, é porque sabiam que ele ia ganhar. O prefeito joga sempre com quem está ganhando”.

Política externa tem sido maior marca de Lula

Uma área na qual o atual governo difere totalmente do anterior, avaliam especialistas, é a política externa. No atual governo há uma retomada da linha tradicional da diplomacia brasileira. Já no governo Bolsonaro eram comuns os ataques a organismos internacionais e mesmo a países, uma tendência ao isolamento e alinhamento automático a governos, como foi em relação a Donald Trump nos Estados Unidos. O chanceler de Bolsonaro, Ernesto Araújo chegou a declarar que “é bom ser pária”, em relação ao possível isolamento do país.

Essa postura seria muito acentuada no atual momento de guerra no Oriente Médio. “Se o Bolsonaro fosse presidente, estaria apoiando incondicionalmente Israel e os Estados Unidos”, diz o cientista político e professor da UFPR Bruno Bolognese. Para ele, dificilmente o Itamaraty conseguiria conter o ímpeto do ex-presidente. “Até porque, para a carreira diplomática, o Bolsonaro indicava os diplomatas mais ligados a ele. Essa seria uma diferença muito marcante. E infelizmente, porque a palavra de um chefe de estado pesa muito”.

Professor na Pós-Graduação da PUC-PR, o também cientista político Eduardo Miranda considera que, diferentemente do presidente Lula, que tenta negociar uma saída para o conflito, Bolsonaro “atropelaria” o Itamaraty em seu apoio a Israel. “Ele ficou muito tempo como um personagem caricatural no cenário internacional. O Itamaraty tem uma posição oficial mais respeitada, não iria retirar sua opinião. E o Bolsonaro teria sua opinião vulgar, submetida aos interesses dos Estados Unidos. Ele faria isso para os eleitores internos, sem intenção de ser ouvido no cenário internacional”.