O relatório da CPI da Covid não vai alterar o apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Congresso nem entre seus eleitores mais fiéis, mas poderá causar um desgaste em sua imagem para a eleição de 2022. Isso deverá levar à perda de apoios e ao fortalecimento de outras candidaturas, avaliam especialistas ouvidos pela FOLHA sobre o relatório da CPI, que será votado pelos membros da comissão nessa terça-feira (26). Do ponto de vista jurídico, as consequências do documento dependerão do entendimento da Procuradoria-Geral da República (PGR) e dos Ministérios Públicos dos estados.

Imagem ilustrativa da imagem Relatório final da CPI pode influenciar cenário eleitoral?
| Foto: Pedro França/Agência Senado

Elaborado pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL), o relatório pede o indiciamento de 66 pessoas e duas empresas (Precisa Medicamentos e a VTCLog). Entre os 66 citados estão Jair Bolsonaro, três de seus filhos (Flávio, Carlos e Eduardo), os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), os ministros Onyx Lorenzoni (Cidadania) e Marcelo Queiroga (Saúde), integrantes do governo federal, deputados da base de apoio, lobistas, influenciadores e empresários — como o dono da Havan, Luciano Hang, e os gestores do plano de saúde Prevent Senior.

Entre os delitos listados então crime contra a humanidade, epidemia com resultado morte, crimes de responsabilidade, corrupção ativa, incitação ao crime, improbidade administrativa, formação de organização criminosa e falsidade ideológica, entre outros. Ao todo, são 29 tipos penais. Renan atribuiu a prática de nove crimes a Bolsonaro. Caso o presidente fosse julgado e condenado às penas máximas por cada crime, a punição chegaria a 38 anos de prisão.

Durante a aprovação do relatório, a comissão decidirá para qual órgão cada pedido de indiciamento será encaminhado. Os casos de Bolsonaro, membros do governo e parlamentares serão analisados pela PGR, já que eles possuem foro privilegiado. Os demais pedidos (inclusive os que se referem a ex-integrantes do governo) serão encaminhados para o Ministério Público do estado de residência do investigado — no caso de Luciano Hang, por exemplo, o Ministério Público de Santa Catarina. Caberá à PGR e aos MPs estaduais decidir se oferecem ou não denúncia à Justiça (se a pessoa será ou não processada).

Discurso e base de apoio

Todo esse processo pode ser longo, mas há também os efeitos políticos do relatório. O primeiro deles, na avaliação do analista político e professor de Ética e Filosofia Política na UEL (Universidade Estadual de Londrina) Elve Cenci, é a quebra no discurso do presidente. “Bolsonaro teve capacidade de fazer a pauta, ele pautava as polêmicas com suas falas no cercadinho. A CPI foi o primeiro momento, desde que ele assumiu a Presidência, em que esse processo foi quebrado”, diz o analista. “A CPI vai destruir a narrativa que ele vinha construindo de olho na reeleição. A não ser para os convertidos”.

Cenci não acredita que a atribuição de crimes ao presidente leve a um enfraquecimento de sua base de apoio no Congresso — ao contrário, pode torná-la ainda mais coesa. “Para o centrão, ter um presidente combalido é positivo. O centrão normalmente suga quem está no governo, até a última possibilidade”, afirma o professor. “Um presidente fraco, ameaçado de impeachment, faz concessões a rodo. Não interessa para o centrão discutir o impeachment, só se chegarmos a uma situação de ingovernabilidade. Na eleição de 2022 o centrão vai se dividir, depois se reagrupa no novo governo”.

Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Luiz Domingos Costa também avalia que a base não deve abandonar o governo neste momento — o que afasta a possibilidade de um impeachment. “Os parlamentares do centrão tendem a permanecer na base de apoio até os limites da possibilidade de usufruir os benefícios dessa condição, o que tem a ver com os privilégios de acesso ao orçamento”, afirma. “Os ganhos em relação ao orçamento cresceram muito durante o governo Bolsonaro e esse é um incentivo forte para os deputados ficarem com o presidente”.

Costa calcula que a base só começará a repensar seu apoio a Bolsonaro na metade do ano que vem, já pensando na eleição — aí sim atenta à imagem do presidente. “O limite do centrão é até a exploração do orçamento de 2022, no sentido de extrair benefícios, e isso pode se dar até junho ou julho. A partir daí eles podem abandonar a base para fazer suas alianças nos estados e ficar à espera do encaminhamento do primeiro turno de 2022, para fazer aliança com outro candidato”.

Anestesia

Outro fator que pode reduzir o impacto político do relatório é a naturalização de fatos que em outros governos soariam como absurdos, avaliam os especialistas. “É um dos efeitos perversos de um governo que é muito provocativo”, diz Luiz Domingos Costa. “Quanto mais barbaridades aparecem nos pronunciamentos do presidente, maior é a anestesia que isso produz. As pessoas começam a se acostumar. Do ponto de vista da dilapidação institucional é semelhante. Isso causa um cansaço, uma normalização dessas condutas”.

Para Elve Cenci, Bolsonaro deverá manter a estratégia de atacar os membros da CPI e tentar desqualificar o relatório. “Publicamente ele vai desdenhar, falar para o público dele não acreditar no relatório. Ao invés de explicar os fatos, ele ataca as pessoas”. Neste sentido, os pedidos de indiciamento deverão ter pouco efeito no eleitorado do presidente, julga Cenci. “A adesão de parcela do eleitorado é absolutamente emocional. Ela apoia o Bolsonaro independentemente do que ele fizer ou de falas desastrosas”.

Fator político x fator jurídico

No meio jurídico, a expectativa é quanto à atuação do procurador-geral da República, Augusto Aras, que vem sendo acusado de agir para engavetar investigações contra o presidente Jair Bolsonaro. “Está todo mundo ansioso para ver se o Aras vai encaminhar alguma das denúncias”, diz Caroline Godoi de Castro Oliveira, doutoranda em Direito Constitucional e professora da universidade Estácio, em Curitiba. “Ele disse que, se entender que há indícios consistentes, não vai deixar de tomar uma atitude”.

Caso a CPI avalie que é necessário colher mais provas, os senadores podem solicitar novas investigações à Polícia Federal, explica Caroline Godoi. “É amplo o poder da CPI de encaminhar, porque a CPI não pode julgar. O relatório indica que houve uma política de morte que o governo assumiu durante a pandemia. Para tentar buscar uma maior garantia de que essas denúncias sejam efetivas e que haja de fato a responsabilização, a CPI pode encaminhar os pedidos para vários órgãos”.

Para Luiz Domingos Costa, o efeito do relatório será mais político do que jurídico. “Ele foi muito divulgado, teve algum efeito do ponto simbólico, e isso não foi trivial. Mas juridicamente acho que não vai ter nenhum encaminhamento”. O cientista político calcula que a pandemia não estará entre os temas centrais na eleição de 2022. “Embora as pessoas que perderam familiares não perdoem, elas não chegam a ser suficientes para alterar o quadro eleitoral. O que vai pegar é o fator econômico e social. O relatório poderá ser usado na campanha, mas não será o grande elemento da eleição”.

Crimes contra a humanidade

O relatório do senador Renan Calheiros pede o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro, o ministro do Trabalho, Onyx Lorenzoni, e o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello por crimes contra a humanidade. A tendência é que a CPI encaminhe esses pedidos para o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, afirma Caroline Godoi, já que o Brasil é signatário do Tratado de Roma. A partir daí, o Tribunal analisa se aceita a denúncia. “É um processo bastante demorado. A primeira análise que se faz é sobre se aquele crime se enquadra na jurisdição do Tribunal. Depois, tem toda a instrução processual”, afirma a professora.

Doutor em Direito Processual Penal, o advogado Bruno Milanez explica que um dos filtros para o Tribunal Penal Internacional aceitar uma denúncia é a capacidade do país de origem de levar o processo adiante de forma independente. “Mesmo que haja indícios, o processo só vai ser instaurado se o Tribunal entender que o Brasil não tem condições de conduzir esse processo. Na minha análise, é um pouco mais difícil de haver um processo no Tribunal Penal Internacional, porque a princípio o Brasil teria condições de realizar a persecução penal”, diz Milanez.

O tipo penal mais citado por Renan Calheiros no relatório é o de incitação ao crime: 24 pessoas foram acusadas, entre elas os filhos de Bolsonaro, as deputadas federais Bia Kicis (PSL-DF) e Carla Zambelli (PSL-SP), o ex-deputado Roberto Jefferson (que está preso), blogueiros e influenciadores bolsonaristas. Alguns deles são “suspeitos de disseminar fake news”, segundo Renan. “A propagação de notícias falsas pode ter outra intenção por trás. A pessoa pode ser punida por essa intenção”, afirma Bruno Milanez. “É possível alguém pode propagar uma notícia falsa para disseminar uma epidemia, por exemplo”.