Menores unidades administrativas do País, as cidades, independentemente de seu tamanho, formam a linha de frente na guerra contra a pandemia da Covid-19. Coube aos prefeitos a criação de regras para impor o distanciamento social, o que, consequentemente, acabou provocando os primeiros impactos econômicos da crise. A crise promoveu um terrível cenário: ruas vazias, estabelecimentos fechados, escolas paradas e unidades de saúde muito movimentadas. O formato da divisão dos poderes no País estabelece essa função. Cláusula pétrea da Constituição de 1988, o regime de República Federativa adotado no Brasil impõe a união indissolúvel dos 5.570 municípios, 26 estados e o Distrito Federal, autônomos, com suas respectivas prerrogativas, responsabilidades e recursos. As atuais circunstâncias socioeconômicas acabaram impondo um desafio ainda maior para as cidades. “Avalio que a crise vai se expressar de forma mais grave nas médias e grandes cidades, onde o número de infectados pela Covid-19 é maior. Fora isso, há um desequilíbrio na atividade dos serviços. Então, para 2021, só existe uma solução: a vacinação em massa”, analisa Gilberto Perre, secretário-executivo da FNP (Frente Nacional de Prefeitos).

Imagem ilustrativa da imagem Os enormes desafios dos municípios em meio a crise sem fim
| Foto: Lis Sayuri/9-3-2015

Dependentes do PNI (Plano Nacional de Imunização), com os sistemas de saúde estrangulados, os prefeitos têm capacidade limitada para ação. A chegada de doses dos imunizantes em ritmo lento, provocada pelo gerenciamento caótico do Ministério da Saúde, fez com o que o Congresso e o STF (Supremo Tribunal Federal) decidissem por flexibilizar as regras para os registros de novas vacinas e estabelecessem a permissão para a compra dos imunizantes no exterior por parte de estados e municípios. O que pode parecer uma solução prática traz ainda mais apreensão para os administradores das cidades. “Essas decisões acabam por desregular o PNI. Há um desequilíbrio e nem todos terão capacidade de comprar, além de aumentar a concorrência, que já é grande, enquanto algumas empresas só negociam com países. Vão criar uma desordem do sistema e um leilão para ver quem paga mais”, afirma o prefeito Aquiles Takeda Filho (PSD), de Marilândia do Sul, presidente do conselho do Consórcio Paraná Saúde, que reúne 398 cidades do Estado.

Com a visão de que o conjunto de cidades terá um maior poder de negociação no mercado exterior, o grupo pretende ir em busca de vacinas somente depois de conhecer o posicionamento do governo Ratinho Junior (PSD), que tem maior cacife para as negociações comerciais. O ramo não é para peixes pequenos. Basta ver a dimensão do valor liberado recentemente pelo Congresso em uma medida provisória para a compra de imunizantes: R$ 20 bilhões. Takeda Filho, no entanto, acredita que, mesmo que os negócios feitos por estado ou municípios deem certo, a chegada das vacinas pode não estar assegurada. “Mesmo que consiga fazer a compra, sabe-se lá por qual preço, as entregas vão demorar. Como foi na época em que faltaram respiradores. Além disso, quem garante que o governo federal não possa confiscar as vacinas na alfândega, diante da necessidade nacional? Sou farmacêutico por formação e vejo que, pelo lado técnico, essa escolha está errada. No entanto, politicamente, como resposta à população, parece uma boa forma de mostrar uma movimentação efetiva”, afirma o prefeito.

GARGALOS

Sem o controle do avanço do coronavírus e a irregularidade do funcionamento das atividades econômicas, o prejuízo socioeconômico continuará incalculável. Com taxa de desemprego recorde em 2020, atingindo 13,4 milhões de pessoas, os prefeitos aguardam por um aumento da demanda dos serviços públicos e da assistência social. “Metade do que as cidades gastam é com Saúde e Educação. Quanto mais se prolonga a crise, maior será a demanda represada por atendimentos hospitalares e ambulatoriais para outras doenças. Isso sem contar que o retorno às aulas irá impor um custo maior para o sistema. Será preciso aportar uma quantia extra do orçamento para cumprir o regulamento sanitário”, explica Gilberto Perre, analisando sob a perspectiva da FNP. Outro serviço que também está pressionado é o transporte público – em Londrina mesmo já houve paralisação dos rodoviários em janeiro. A compreensão é que o sistema baseado nos atuais cálculos das passagens já demonstra estar em xeque, o que faz com que as cidades precisem cada vez mais aportar recursos para manter os ônibus em circulação. “Já havia uma crise e a pandemia veio jogar uma pá de cal. Os sistemas de transporte estão na iminência do colapso. O custo se tornou insustentável frente à concorrência do transporte por aplicativo e a diminuição da demanda”, detalha Perre.

Do ponto de vista econômico, o fim dos diferentes auxílios financeiros e a tendência de previsão de receitas conservadoras atingem diretamente a arrecadação tributária, que já passa por um momento bastante sensível antes da pandemia. Num cenário como esse, somado ao avanço da informalidade, a parcela das transferências federais tende a cair, ou seja, os recursos para as cidades serão menores. O comportamento se explica pela estrutura em que foi baseado o Pacto Federativo. Dados da CFM (Confederação Nacional de Municípios) apontam um desequilíbrio no reparte do bolo tributário, enquanto as cidades tiveram atribuições aumentadas. Consideradas todas as transferências voluntárias, a receita disponível corresponde ainda a 19% do total, o mesmo que em 2000. “O nosso federalismo tem ônus e bônus. Enquanto na pandemia as cidades puderam estabelecer regulamentações em seus territórios, há uma simetria. Tanto faz o tamanho da cidade, todas têm as mesmas obrigações, isso é um baita de um problema. A pandemia pegou os municípios com retração da arrecadação e muitos sobrevivem das transferências, o que, com o aumento de despesas, levou a uma situação trágica”, avalia Rodrigo Horochoski, professor de Ciência Política e Administração Pública na UFPR (Universidade Federal do Paraná).

MUDANÇA

Uma proposta de Emenda à Constituição do Pacto Federativo – a PEC 188/2019 – feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, propõe descentralizar, desindexar e desvincular os recursos, o que segundo o governo poderia entregar aos estados e municípios até R$ 400 bilhões em 15 anos. Há uma extensa lista de mudanças propostas como a unificação dos gastos mínimos em educação e saúde, mas nem todas deverão ser fáceis de serem aprovadas. Uma das ideias é propor a extinção de municípios com menos de 5.000 habitantes com arrecadação inferior a 10% da receita total até 2023. “O problema é o nível de responsabilidades dos municípios. Como um exemplo, precisa-se imaginar uma cidade que tem poucas crianças e muitos idosos, por que ela obrigatoriamente precisa aplicar 25% das receitas em Educação?”, questiona Horochoski. O debate não parece ter a menor hipótese de se encaminhar em meio ao estado de calamidade pública instalado no País há praticamente um ano. O assunto está na tangente do conjunto de reformas, como a Tributária e Administrativa, que necessitam de um amplo debate com diferentes áreas. O tempo político está se arrastando e não se sabe se há melhora com a escalada de casos e mortes causadas pela Covid-19.

Não há soluções simples para problemas complexos. Os ajustes precisam ser feitos de acordo com a sensibilidade dos governantes, em especial do Executivo Federal. Com pouco traquejo político e muito focado na reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é claudicante. Aprovado por seus eleitores mais fiéis, é visto com desconfiança pelos responsáveis dos demais entes da federação e assim como pelos outros poderes. A fragilidade das cidades é exposta pelo prefeito de Marilândia do Sul, limítrofe de Londrina. “O principal recurso para uma cidade do porte da que eu governo, com 11.000 habitantes, é a ação do governo federal. Posso buscar algum incentivo, encontrar um terreno para uma nova empresa, mas dependemos muito da economia federal e estadual. Se ambos não agirem, em meio ao aumento da inflação, nada se resolverá e, no fim das contas, os problemas irão estourar primeiro no município, que não tem recurso para nada”, analisa Takeda Filho.