Operação Lava Jato sai de foco e deixa cenário de incertezas
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sábado, 13 de fevereiro de 2021
Pedro Moraes - Grupo Folha
Somente com o distanciamento do passar dos anos será possível saber como a operação Lava Jato será lembrada nos livros de História para as gerações futuras. É inegável, no entanto, que o trabalho dos membros do MPF (Ministério Público Federal), somado à PF (Polícia Federal) e à Justiça, escreveu um novo roteiro no País sobre o combate à corrupção e mudou a impressão da sociedade sobre o famoso final infeliz, popularmente conhecido como “acabou em pizza”. O que se viu ao longo de quase sete anos foi um volume de ações que culminaram na condenação e prisão de personagens que jamais seriam vistos naquela situação antes. Empresários, empreiteiros, políticos de alto escalão, como senadores, governadores e até o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O fim da força-tarefa em Curitiba, onde os trabalhos se iniciaram, foi decretado no último dia 3 – as investigações passaram para o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado). “O legado da força-tarefa da Lava Jato é inegável e louvável, considerando os avanços que tivemos em discutir temas tão importantes e caros à sociedade brasileira”, diz Alessandro José de Oliveira, que coordenava a força-tarefa de Curitiba e vai assumir o núcleo da Lava Jato no Gaeco paranaense.
Os números associados no STF (Supremo Tribunal Federal) provam como o tamanho da apuração iniciada em desvios de recursos da Petrobras tomou dimensões inimagináveis. Somente na corte superior foram expedidos 221 mandados de busca e apreensão, emitidas 12 prisões preventivas, duas prisões temporárias, 29 denúncias, além de promover 102 acusações e quatro condenações. Na primeira instância em Curitiba, o grupo travou 723 pedidos de cooperação internacional, conseguiu a devolução aos cofres públicos de mais de R$ 4,3 bilhões e outros R$ 14,8 bilhões pagos em acordos, num total de 79 fases da operação. “Como todo trabalho dessa amplitude, as forças-tarefas devem ser reavaliadas e aperfeiçoadas constantemente. No entanto, há pilares que, necessariamente, sustentam sua eficiência. Se a seleção dos integrantes desses grupos e a definição de coordenador responsável demandam a fixação de regras objetivas, a estrutura adequada, material e humana, precisa ser garantida. Da mesma forma, é imprescindível que os profissionais escolhidos tenham dedicação exclusiva e compromisso diuturno com as melhores práticas de investigação”, afirma nota da Associação Nacional dos Procuradores da República sobre o fim da organização interna.
MUDANÇA
Na prática, tudo o que foi apontado como prioridade deixará de ser feito como era até então. Daqui em diante, dos 14 procuradores da República que ainda atuavam na força-tarefa no Paraná, quatro passam a integrar o Gaeco, com mandato até agosto de 2022, enquanto os outros dez devem continuar a atuar na operação até 1º de outubro, sem dedicação exclusiva e a partir de suas lotações de origem. Quem já esteve nos bastidores acredita que o ritmo de trabalho será prejudicado. “O novo modelo proposto, de Gaecos, na minha opinião, não corresponde às experiências estaduais. São apenas uma divisão interna nas procuradorias da República nos estados, sem terem nenhuma estrutura, nem laboratórios de lavagem de dinheiro nem sistema guardião para gerenciamento de escutas telefônicas judicialmente autorizadas nem sequer apoio de policiais. O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que pretende voltar ao bom e velho método de combate à corrupção, ou seja, sem dinheiro, sem estrutura e sem resultados”, afirma Carlos Fernando dos Santos Lima, advogado especialista em compliance e procurador da República aposentado, ex-integrante da força-tarefa em Curitiba.
O berço da Lava-Jato é exatamente a cidade de Londrina. Um inquérito do ex-delegado da Polícia Federal Gerson Machado, em 2008, contra o doleiro Alberto Youssef, é considerado o primeiro passo das investigações que identificaram irregularidades após uma delação no escândalo do Banestado. Depois, em 2013, grampos telefônicos deram conta que, a partir de um posto de combustíveis em Brasília, o Posto da Torre, uma casa de câmbio era utilizada para evadir divisas do País. Daí saiu o nome da operação, um trocadilho do tipo de crime com atividade comercial de fachada. No ano seguinte, o MPF no Paraná iniciou um grupo de atuação composto pelos procuradores Deltan Dallagnol, Carlos Fernando Lima, Roberson Henrique Pozzobon. O fim da atuação da equipe, não mais liderada pelos três, foi um processo que passou por diferentes etapas até chegar ao derradeiro capítulo. “A crise atual é totalmente fabricada. Trata-se da conjugação de esforços da classe política em calar o Ministério Público e a Polícia Federal com a legislação do abuso de autoridade e com o aparelhamento do Conselho Nacional do Ministério Público para punir procuradores, e uma campanha de comunicação arquitetada para requentar supostas mensagens roubadas por um criminoso”, analisa Lima em entrevista à FOLHA.
VAZAMENTO
Com grande apoio popular e apelo midiático com suas prisões e nas detalhadas apresentações sobre os passos das diversas fases da operação, a Lava Jato teve seu maior revés com a publicação pelo site “The Intercept Brasil”, em junho de 2019, de conversas obtidas por hackers atribuídas ao ex-juiz federal Sergio Moro e membros do MPF. O conteúdo controverso juridicamente e com indícios de politização passou a se tornar o principal material contra os procedimentos adotados e resultados dos trabalhos da força-tarefa. O volumoso material que é composto por essas mensagens é parte das investigações da PF, na operação Spoofing. “É possível afirmar que as revelações escancaram as atrocidades jurídicas cometidas pelos procuradores da Lava Jato, que atuavam servilmente sob a chefia do então juiz responsável – supostamente imparcial –, e em conluio com agentes estrangeiros, visando o atendimento de interesses estrangeiros. A Lava Jato tem sido acusada por juristas de ser o maior escândalo judiciário da era moderna”, afirma Larissa Ramina, professora de Direito Internacional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.
Mesmo quem atua na defesa de réus e investigados, como o caso do advogado criminalista Walter Bittar, reconhece a importância do combate à corrupção, mas alerta que o que se espera é um sistema que puna os verdadeiros culpados, sem propiciar nulidades no processo e violações à legislação do País. “O desvirtuamento das funções do magistrado e do promotor, que não são super-heróis sem capa, visando eliminar a possibilidade de defesa justa, não deve ser admitido em nenhum país democrático. O desrespeito ao Estado de Direito é tão tóxico quanto a corrupção que se pretende combater”, critica. Ele defende que mudanças e evoluções no Direito são necessárias e bem-vindas, mas, segundo Bittar, não se pode tentar esconder ineficiência e despreparo, alegando que a legislação não permite o agir conforme a lei para investigar e processar. “Nossa legislação tem evoluído e é boa, o que difere de se tentar deturpá-la, alegando que não tem eficiência”, esmiúça.
SELETIVIDADE
Uma das ponderações comumente feitas aos métodos utilizados pela Lava Jato, como a condução coercitiva e as delações premiadas – que dão benefícios a acusados que detalham como funcionavam os esquemas ilícitos –, é resultado de uma inegável diferença do tratamento de diferentes camadas sociais na Justiça. Os processos ganharam a dimensão das cifras e dos personagens envolvidos. “Este é um reflexo do que como funciona o capitalismo. Um advogado apenas manobra os recursos disponíveis, que são muitos. Quem disponibiliza tais recursos é a atividade legislativa. Os lados envolvidos têm que estar preparados para enfrentar o devido processo”, afirma o advogado criminalista João dos Santos Gomes Filho, atuante na Lava Jato. Ele critica a tentativa de membros do MPR em mudar as garantias oferecidas no processo legal. “Depois de 20 anos da promulgação da nossa Constituição, vem um grupo de jovens querendo mudar medidas que afetam as garantias. Não se pode combater a corrupção driblando a lei”, pondera.
Apesar de a imparcialidade ser uma das premissas fundamentais da busca pela Justiça, quem vive do Direito sabe que não há interpretação livre de qualquer juízo de valor. O criminalista Walter Bittar, porém, diz não ser possível analisar se há ou não politização do judiciário, somente com base no que ocorreu na Lava Jato. “A politização ocorre em todos os setores e o judiciário não está imune. É preciso também considerar que não existem juízes neutros e, com toda certeza, esse fato termina por afetar em algum momento suas decisões. Diferente é a busca do juiz por imparcialidade para julgar e os objetivos que existem – ou não deveriam existir – por trás de decisões judiciais”, opina. O combate à corrupção, apesar de ter sido intensificado no Brasil, assim como ser tema mundial, precisa ser mais profundo, segundo ele. “Ainda se furam filas para vacinação, se paga propina, se aceitam auxílios imorais e até ilegais, se estaciona irregularmente em vagas para idosos e deficientes. Desrespeitam regras mínimas de convivência como se não fossem condutas corruptas. O combate à corrupção não é feito apenas pelo sistema punitivo que, na verdade, é o último elo da cadeia”, define.
LEGADO
Sobre o futuro do combate à corrupção, na perspectiva de quem atuou na linha de frente, o legado do que foi feito até aqui pode estar em risco. “A única esperança é não regredirmos 30 anos. Estão sendo estudadas mudanças na lei de Improbidade Administrativa, na lei de Lavagem de Dinheiro, dentre outras, tudo com o objetivo de tornar a corrupção política inexpugnável”, detalha Lima, com apreensão. Ele cita ameaças como procedimentos administrativos a procuradores, policiais e juízes, retiradas de mecanismos de compartilhamento de informações de inteligência para destruir experiências positivas do que foi conquistado. “Estão trabalhando fortemente para voltarmos à Idade Média, onde os senhores feudais da política mandavam e nós, o povo, obedecíamos sem termos a quem recorrer. A sorte que temos é que a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) está atenta, bem como a própria Transparência Internacional, ao que está acontecendo. A sociedade civil e as instâncias internacionais podem, esperamos, pressionar pela reversão deste quadro, mas isso só acontecerá a longo prazo”, prevê.