Há siglas que historicamente têm tanta força que não precisam de explicação. Qualquer pessoa entende um chamado de socorro ao ler SOS. Na política, em especial para um governo, três palavras promovem um pavor quase que fúnebre: CPI. Na história recente da democracia brasileira, as Comissões Parlamentares de Inquérito foram peças-chave no desencadeamento de instabilidades institucionais. Não foram poucas. O mecanismo criado na Constituição de 1934 teve um marco em 1992 que envolveu o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que acabou perdendo o cargo. Naquele momento, o País redescobriu, após longo período de Ditadura Militar, o mecanismo de fiscalização pública. Agora, em meio à mais grave crise sanitária que os brasileiros já viram, com milhões de infectados e quase 400 mil mortos devido à Covid-19, o Senado se prepara para dar início aos trabalhos de apuração da condução nacional até o caos que nos encontramos hoje. Como em todo processo semelhante, é possível se conhecer as razões e os primeiros passos que serão trilhados, mas jamais como será seu fim.

Senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) foi quem pediu a abertura da comissão
Senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) foi quem pediu a abertura da comissão | Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Não bastasse o tumulto que uma comissão pode causar no meio político, a forma pela qual a que está em voga foi instalada faz aumentar o fogo da fervura. Já alcançados os pré-requisitos necessários – número de assinaturas de parlamentares e a existência de fato determinado e prazo para funcionamento -, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não enxergou o momento como apropriado para acatar o pedido encabeçado pelo senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP). A questão foi judicializada e o STF (Supremo Tribunal Federal) acabou determinando a abertura da CPI. O fato, apesar de desagradar os apoiadores do governo, não é inédito. Ao contrário, se baseia em jurisprudência. Em 2005, o mesmo aconteceu com a CPI dos Bingos, em 2007 com a do Apagão Aéreo e, finalmente, em 2014, a da Petrobras. “O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pode ficar tranquilo, não temos ele como alvo, mas sim os fatos. Há muitas perguntas que clamam por respostas, são exigências da sociedade brasileira que precisam de esclarecimentos”, afirma Rodrigues, ao lembrar que a investigação é uma homenagem às vidas perdidas e às famílias enlutadas.

As expectativas mais otimistas apontam que a primeira sessão poderá ser feita na próxima quinta-feira (22). Conforme as regras do Senado, será presidida em sua instalação pelo mais velho do grupo, no caso o senador Otto Alencar (PSD-BA). Na ocasião, serão oficializados o presidente e o relator. Os bastidores já dão conta de que o Planalto e a oposição alinhavaram um nome considerado neutro para o comando, o ex-governador do Amazonas e atual senador Omar Aziz (PSD), enquanto o experientíssimo e crítico a Bolsonaro, Renan Calheiros (MDB-AL), ficará com a relatoria. O cenário, aparentemente, aponta para uma independência em relação ao governo. Já Ranfolfe Rodrigues, autor do requerimento da CPI, ficará com a vice-presidência. Há expectativa de que o funcionamento seja semipresencial. “O mais importante do Congresso é apurar a responsabilidade sobre as perdas de vidas humanas. Se for séria e honesta, a CPI poderá ser, inclusive, uma medida sanitária, evitar o morticínio. Somos o epicentro da pandemia no mundo: a cada 10 pessoas que morrem atualmente, três são brasileiros. Estou disposto a fazer qualquer um dos serviços necessários. A única coisa que não pode ocorrer é um fracasso. Virar palco para chicana jurídica”, disse Rodrigues à FOLHA. O prazo inicial de funcionamento da comissão é de 90 dias, mas nada impede que seja prorrogado, caso necessário.

o senador Eduardo Girão (PODE-CE) compõe a base do governo na comissão
o senador Eduardo Girão (PODE-CE) compõe a base do governo na comissão | Foto: Pedro França/Agência Senado

INÍCIO

Uma série de personagens é esperada para dar suas explicações, como os três ex-ministros da Saúde de Bolsonaro. Dois deles, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) e o médico Nelson Teich, podem ser críticos às posturas do governo, enquanto o general Eduardo Pazuello guiou de forma errática o gerenciamento da pandemia no País nos piores momentos. A ele cabe cobranças mais duras. Antes da apuração do núcleo político, há um interesse em que se faça um levantamento de questões científicas. O grupo deve ouvir epidemiologistas, infectologistas e biólogos, entre outras autoridades do ramo. A ideia é que, a partir de tais explicações, sejam dadas as respostas sobre como o Brasil chegou a tamanha gravidade. “Precisamos entender o impacto de quantas vidas poderiam ter sido poupadas caso tivéssemos incentivado o uso de máscaras. Sobre as questões relativas à disponibilidade das vacinas. Óbvio que será preciso entender qual é a eficácia da hidroxicloroquina. Parece que estamos nesse atoleiro sanitário porque a ciência não foi ouvida”, detalha Rodrigues, que não descarta a possibilidade de escutar integrantes do Exército, que produziu medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19.

Apesar de o alvo preferencial da CPI serem as ações – ou inações – do governo Bolsonaro para gerir a crise pandêmica, a força do Planalto buscou incluir uma apuração ampla, com a hipótese de chafurdar em possíveis irregularidades cometidas em estados e municípios. O que seria uma forma de tirar o foco das responsabilidades do Executivo nacional. Pela capacidade que cabe ao Senado, no entanto, só será possível avaliar atos irregulares promovidos com recursos federais. A CPI será composta por 11 senadores e o apoio ao governo deve ser minoria no colegiado, já que sete deles são oposicionistas ou independentes. Apontado como um dos quatro que compõem o grupo governista, Eduardo Girão (PODE-CE) afirma ser preciso definir claramente os critérios de prioridade para apurar indícios muito fortes de grandes desvios das centenas de bilhões de reais que foram transferidas dos cofres da União. “São três bons desafios. Impedir a contaminação eleitoral visando 2022, atender ao clamor da sociedade no combate à corrupção e à impunidade e contribuir para a diminuição de tanta dor e sofrimento do povo brasileiro, poupando vidas”, elencou Girão para a FOLHA.

ANÁLISE

A CPI da Covid-19 tem a oportunidade de ser um dos episódios mais marcantes da história recente. A principal razão é que, enquanto as comissões anteriores tinham como alvo atos de corrupção, esta tem como obrigação apurar atos e omissões que foram – mesmo que indiretamente – responsáveis pela morte de milhares de brasileiros. O cientista político Rodrigo Horochovski, professor da pós-graduação da UFPR (Universidade Federal do Paraná), acredita que, mesmo com a inclusão da apuração das verbas federais, o escopo dos trabalhos ficou bem delimitado. “As CPIs são parte da vida dos brasileiros desde o tempo do Sarney. Algumas foram determinantes para o futuro dos governos, outras nem tanto. Uma coisa é certa: nenhum governante gosta do processo porque é um baita de um palanque eleitoral”, afirma o estudioso, que tem uma aposta sobre quem será o homem-bomba da vez. “Com certeza, Pazuello. Ele já deu sinalizações de que não estava no comando. Disse fatos sobre ordens para destinar recursos, assim como aceitou indicações para cargos. Ou seja, o Ministério não estava sob seu controle”, detalha Horochovski, indicando que a mira pode se voltar diretamente para Bolsonaro.

O resultado de uma CPI não provoca uma imediata ação contra os possíveis responsáveis. O relatório final é encaminhado ao Ministério Público para que sejam tomadas providências. Fato é que a exposição dos atos e personagens – CPIs tendem a ser alvo de matérias longas no noticiário televisivo – provocam enorme desgaste. Se contar que Bolsonaro já vem enfrentando uma enorme queda de popularidade, o futuro não parece ser promissor, até porque suas ações públicas ao longo do último ano demonstram equívocos sobre como enfrentar a crise sanitária. “É a tempestade perfeita contra ele. O mais curioso é que, apesar da experiência política do presidente, em vez de buscar o trânsito com os demais envolvidos, ele trunca tudo. Bolsonaro é o populista de fato, ultrapassa as instituições para falar diretamente com seu eleitorado”, analisa Horochovski, que completa. “Curioso que, em perspectiva, qualquer político já teria caído antes. Uma coisa ele soube fazer, e parece ser bem assessorado: costurar apoio nas forças que o mantêm. Fora isso, dificilmente o Congresso tiraria ele do poder para colocar no poder um vice general”, diz. Já que não existe a futurologia, cabe esperar os fatos e aguardar o que está por vir.