Usado nos últimos anos por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) para pedir uma “intervenção militar” no país, o artigo 142 da Constituição Federal voltou a ser citado após a derrota do candidato à reeleição, no último dia 30, para Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para eles, bastaria o presidente “invocar o artigo 142” ou até mesmo “permanecer 72 horas em silêncio” para que as Forças Armadas atuassem.

Imagem ilustrativa da imagem O que é o artigo 142 citado por bolsonaristas para contestar eleição
| Foto: Miguel Schincariol/AFP

Os objetivos não são claros, mas vão da destituição de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) à anulação das eleições, além da prisão de Lula e de ministros do STF, entre os quais Alexandre de Moraes é o principal alvo. Alguns defendem “intervenção militar com Bolsonaro no poder” e outros chegaram a dizer, após a eleição, que o presidente ficaria em silêncio para que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica pudessem agir.

Para juristas ouvidos pela FOLHA, esse tipo de interpretação é visto no meio do Direito como uma “tese despropositada” e “totalmente fora da realidade”. O artigo 142 diz que as Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Para os bolsonaristas, o presidente, como chefe do Executivo, poderia acionar os militares para “garantir os poderes constitucionais”.

Segundo o advogado Walter Barbosa Bittar, doutor em Ciências Criminais e mestre em Direito Social e Econômico, essa tese foi exposta pela primeira vez em um artigo do filósofo Vladimir Safatle, publicado pelo jornal Folha de São Paulo. Depois de um artigo do advogado Ives Gandra Martins, em 2020, publicado no site jurídico Conjur, a ideia passou a se espalhar entre os grupos bolsonaristas.

“Esta interpretação, muito particular, foi compartilhada por Bolsonaro e seus apoiadores, viralizando nas redes sociais, e dissipou essa ideia. Essa foi a base para que, em manifestações a favor do atual governo, manifestantes saíssem às ruas pedindo ‘intervenção militar constitucional’”, diz Bittar.

De acordo com o jurista, as Forças Armadas só podem ser utilizadas em casos extremos, de grave convulsão social. “Igualmente, a intervenção é possível na defesa de qualquer um dos poderes constituídos, mas exclusivamente contra ameaça externa, não contra outros poderes constituídos”, afirma. “Uma crise entre Executivo e Judiciário, por exemplo, deve ser solucionada por meio dos instrumentos constitucionais adequados, o que afasta a possibilidade de qualquer tipo de intervenção de um poder sobre o outro”.

RISCO

Advogado e doutor em Direito do Estado pela UFPR, Rodrigo Kanayama diz que a interpretação dada pelos bolsonaristas ao artigo 142 põe os demais poderes em risco. “Um poder em risco é aquele que tem suas competências e atribuições limitadas por outro, de forma a violar a Constituição. O Legislativo ou o Judiciário serem fechados, por exemplo, ou o presidente preso sem direito a processo. Não há risco a partir da atuação institucional de um deles”.

Para Kanayama, o argumento utilizado pelos apoiadores de Bolsonaro, de que o STF teria interferido em decisões legítimas do presidente, também é falho. “A pretensão da Constituição é limitar os poderes pelos outros poderes. Se um impedir que o outro atue, temos uma violação. Em nenhum momento aconteceu isso. Não há motivo para qualquer interpretação desse tipo, não há um golpe em andamento contra o presidente. Pelo contrário, o risco que existe é de o presidente dar um golpe”.

Walter Bittar lembra que os artigos 34 a 36 da Constituição tratam da utilização das Forças Armadas e não preveem “intervenção” em outros poderes. “Nenhuma dessas normas prevê a possibilidade de fechamento do Congresso ou do STF por meio das Forças Armadas ou qualquer outro meio”, diz o advogado. “Imagine se fosse possível dois poderes se juntarem contra outro e requisitassem o auxílio das Forças Armadas? A Constituição não prevê intervenção nos poderes constituídos”.

Poder moderador

Para reforçar a tese da possibilidade de uma “intervenção militar”, Bolsonaro chegou a dizer que as Forças Armadas são o “poder moderador” da República, que poderia interferir para solucionar conflitos entre os poderes. Ele repetiu essa teoria em agosto do ano passado, em uma cerimônia de formação de militares.

O advogado Walter Bittar, doutor em Ciências Criminais e Mestre em Direito Social e Econômico: "tese de lunáticos"
O advogado Walter Bittar, doutor em Ciências Criminais e Mestre em Direito Social e Econômico: "tese de lunáticos" | Foto: Divulgação

“O presidente quis se expressar, mas não observando o que é um poder moderador, que foi um dos poderes que constituíam o Império Brasileiro, de 1822 a 1889”, explica Walter Bittar. “O poder moderador coexistia com os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, formando um quarto poder. Não é o caso das Forças Armadas, face ao conteúdo da nossa Constituição, bem como pelo fato de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito”.

Rodrigo Kanayama define a ideia de um poder moderador na República como uma insanidade. “O poder moderador vinha da coroa, da Constituição de 1824, que previa a existência do poder moderador a partir da coroa do imperador. Seria um quarto poder, para moderar a relação entre os poderes, mas não existe. Em uma palavra, é uma insanidade”.

Segundo Kanayama, nos meios jurídicos as teses que defendem a intervenção militar são vistas como ideias fora da realidade. “Nós entendemos que esses pedidos são despropositados, totalmente fora da realidade", afirmou. “No meio jurídico, em sua grande maioria, essa postura já foi alcunhada de tese de lunático, irresponsável, dentre outras expressões, algumas impublicáveis”, complementou Bittar.

Walter Bittar explica que o presidente da República só pode ser afastado em caso de infração penal comum, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo STF; caso cometa algum crime de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado, com aprovação da Câmara; e no caso de problemas mentais e de saúde. Ministros do STF podem ser afastados pelo Senado, em caso de crime de responsabilidade.

“O que é possível ocorrer é o uso dos instrumentos constitucionais para a retirada de um integrante do órgão máximo de algum poder. Nesse caso, como eles podem sofrer impeachment, assim como qualquer outro integrante dos poderes, podem ser cassados por seus pares. Nenhum desses instrumentos necessita de intervenção das Forças Armadas”, explica Bittar.

Receba nossas notícias direto no seu celular! Envie também suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1