RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - Festa na rua, bares abertos, cervejada, churrasco e pula-pula para as crianças. Pode parecer uma comemoração normal, mas é assim que determinadas milícias da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, apresentam seus candidatos para os moradores da localidade.

Com a pandemia do novo coronavírus, a festa de apresentação ganhou contornos mais discretos em algumas regiões.

Em um bairro de Nova Iguaçu, por exemplo, os moradores foram convocados para uma reunião em um bar. Já outras famílias foram obrigadas a receber em casa o candidato da milícia que controla a área. A ameaça é sutil, mas evidente.

A Folha conversou com dois moradores de regiões dominadas pela milícia na Baixada, em condição de anonimato, para entender com detalhes como esses grupos agem durante o período eleitoral.

Um deles contou que é comum moradores venderem seus votos por baixos valores. Os milicianos checam os resultados por zona eleitoral e, se percebem que outro candidato foi mais votado, quem mora ali é pressionado.

Quem sofre risco ainda maior de ser agredido ou assassinado em caso de derrota é o cabo eleitoral da localidade. No dia da eleição, segundo esse relato, os eleitores que não venderam o voto tratam logo de fazê-lo.

Os milicianos escrevem uma lista com os nome dos moradores, que depois apresentam os comprovantes de votação. Por volta do fim da tarde, recebem o dinheiro.

Enquanto isso, criminosos compram e liberam a cerveja e o churrasco nos bares para criar um clima de eleição e incentivar as pessoas a votarem.

Os bares, inclusive, são bastante visados pelas milícias, que os obrigam a fazer publicidade dos candidatos. Os moradores também são pressionados a apoiar as candidaturas nas redes sociais.

De acordo com outro relato, de outra localidade na Baixada, os moradores são chamados para participar de uma reunião, na qual a milícia pede voto para o seu candidato.

Como pretexto para o encontro, o grupo criminoso apresenta oficialmente desculpas como a troca da presidência da associação de moradores, anúncio de cursos no bairro, oportunidade para reclamar sobre obras, cadastramento do Bolsa Família e recebimento gratuito de cestas básicas.

Nas localidades dominadas por grupos paramilitares, o controle do voto é realizado de três principais formas. Primeiro, pela via do assistencialismo, vendendo a imagem de que os milicianos são benfeitores.

Segundo, por meio de ameaças, exigindo que os moradores votem em seus candidatos e conferindo a contagem dos votos na região.

Por último, pela proibição de que outros concorrentes façam campanhas nesses territórios.

Assassinatos de candidatos na Baixada durante o período eleitoral são frequentes. A IDMJR (Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial), organização de direitos humanos atuante na região, contabiliza que 12 pessoas que se candidatariam nessas eleições às Câmaras Municipais foram assassinadas desde o ano passado.

No início do mês, dois candidatos a vereador em Nova Iguaçu foram mortos a tiros em um intervalo de 11 dias. Um deles havia sido preso em julho durante operação que mirou uma milícia do município.

Após os dois assassinatos, a Polícia Civil criou uma força-tarefa para coibir os grupos paramilitares, visando reduzir interferências no pleito eleitoral. Na última semana, a corporação realizou pelo menos sete ações e matou 17 suspeitos de integrarem milícias.

Em entrevista a jornalistas após a maior dessas operações, o subsecretário operacional da corporação, delegado Rodrigo Oliveira, afirmou que a força-tarefa irá convocar determinados candidatos que, segundo denúncias recebidas, são os únicos permitidos a fazer campanha em áreas de milícia.

"É razoável supor que algumas dessas ações da milícia tentam de alguma forma se traduzir num voto de cabresto. O que a gente tem feito, recebendo essas informações ou essas denúncias, é buscar a pessoa que tem o privilégio de ser o único ator naquele cenário para que ele se explique porque só ele pode fazer aquele tipo de campanha", disse.

A afirmação foi feita após operação que matou 12 homens suspeitos de integrar a maior milícia do estado. Nenhum era policial da ativa, e apenas um agente ficou ferido na ação.

Durante a entrevista, integrantes da Polícia Civil passaram a se referir aos suspeitos como "narcomilicianos" e ressaltaram a suposta ligação daquela milícia com facções do tráfico de drogas.

Os grupos paramilitares são geralmente formados por quadros das polícias Militar e Civil e dos Bombeiros. No estado do Rio, concentram-se principalmente na zona oeste da capital e na Baixada.

No início de seu desenvolvimento, há pelo menos duas décadas, as milícias adentravam as localidades com a falsa promessa de garantir segurança. Agora, estão cada vez mais associadas a determinadas facções do tráfico, especialmente o TCP (Terceiro Comando Puro).

Em março, o sociólogo José Cláudio Alves, que estuda as milícias há mais de 20 anos, afirmou à Folha que a eleição de 2020 seria o momento de "apoteose" dos grupos paramilitares.

Ele entende que o discurso da extrema direita, que prega a eliminação de bandidos e o armamento da população, obteve vitória nacional em 2018. Essa narrativa linha-dura, segundo o sociólogo, favorece a eleição de personagens ligados às milícias.

A um mês das eleições, o professor afirma que o cenário é ainda pior do que imaginava. Ele avalia que o uso do termo "narcomilícias" pela polícia, em entrevista após a morte dos 12 suspeitos, é uma forma de sugerir que os grupos paramilitares são integrados por civis, e não por agentes de segurança do próprio estado.

"Estão empurrando para cima do tráfico a responsabilidade pelas milícias. Enquanto isso, a estrutura miliciana, calcada no estado, fica intocada. Ainda usam o discurso do 'bandido bom é bandido morto', da extrema-direita, faturando politicamente. Por que agora, em plena eleição, uma operação dessa envergadura, com esse número de mortes?", questiona.

O sociólogo também afirma que a pandemia da Covid-19 fortaleceu ainda mais as milícias, diante da vulnerabilidade da população.

"Favorece quem tem o poder local. A sociedade encurralada, sem proteção, teria que se render, não teria como sobreviver nesse cenário desprotegido. É o crime travestido de herói", diz.

Inicialmente, as milícias obtinham lucros em cima da extorsão dos moradores de comunidades, por meio da venda de segurança, de gás e do acesso à TV por assinatura.

Nos últimos anos, no entanto, esses grupos estenderam seus tentáculos e hoje cobram até por consultas em hospitais públicos.

"Se você é amigo do miliciano que controla as relações dentro do hospital, ele vai usar esse recurso para se beneficiar. 'Olha, você lembra que precisou de atendimento porque estava contaminado e eu te ajudei? Agora é o momento de retribuir [e votar no meu candidato]'."