Licenciamento ambiental: audiências devem aquecer debate sobre nova lei
Aprovado na Câmara, texto tramita no Senado sob vigilância mais cerrada da sociedade civil organizada
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sábado, 26 de junho de 2021
Aprovado na Câmara, texto tramita no Senado sob vigilância mais cerrada da sociedade civil organizada
Lúcio Flávio Moura/Especial para a FOLHA
Um sistema produtivo farto das agruras da burocracia. Uma sociedade civil organizada que coloca a proteção ao meio ambiente como uma das principais trincheiras na luta contra a agenda de reformas do governo federal. Um país que busca avançar na modernização da sua infraestrutura, enquanto é classificado como vilão nos esforços globais para conter as mudanças climáticas.

Há muita coisa em jogo na tramitação do Projeto de Lei 3729/2004, que institui a Lei Geral de Licenciamento Ambiental, aprovado em maio pela Câmara dos Deputados e atualmente em discussão no Senado (veja o resumo das alterações nesta página). No início do mês, o vice-presidente da Casa Revisora e membro da Comissão de Meio Ambiente (CMA), senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), conseguiu aprovar um requerimento que impõe um prolongamento das discussões, com a realização de audiências públicas - com datas ainda indefinidas - pela CMA, antes de ir a votação ao plenário. No caso de alteração do texto, o PL retorna para nova discussão na Câmara.
“Ouvir aqueles que conhecem profundamente o assunto é agir de forma responsável com um tema tão delicado para o País”, defendeu Veneziano, que criticou a aprovação em apenas quatro dias na Câmara. Na ocasião, o texto na forma de substitutivo foi apresentado pelo deputado federal e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT).
A relatora do projeto no Senado, Kátia Abreu (PP-TO), declarou na semana passada em evento na Fundação FHC que o excesso de burocracia e de regras atrapalha o desenvolvimento do País sem que isso garanta a preservação ambiental. Ela declarou que o texto pode ser “melhorado” e que não encara o novo marco legal como um “bicho papão”.
No mesmo evento, a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, e a ex-presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Suely Araújo, reconheceram que a atual legislação precisa ser modernizada e simplificada, mas criticaram o texto aprovado pelos deputados. Ambas concordaram que o ponto mais preocupante é a dispensa de licenciamento ou o autolicenciamento em um número excessivo de atividades, o que na prática significaria um descontrole das autoridades ambientais na maioria absoluta dos procedimentos.
O debate está posto e já é possível antecipar argumentações de parte a parte que vão influenciar ou não os senadores até a votação.
ESTRAGO
André Petick Dias, gerente do Observatório de Justiça e Conservação (OJC), entidade de Curitiba que se dedica à conservação das florestas com araucária e dos campos naturais, acredita que a dispensa de licenciamento de atividades altamente impactantes pode fazer “um estrago sem precedentes” e “arruinar irremediavelmente o que sobrou dos recursos naturais”. O ambientalista frisa ainda que este descontrole pode piorar a “já anunciada pior crise hídrica da nossa história, já em andamento”.
Dias, no entanto, tem expectativas positivas para a tramitação no Senado. Ele lembra do caso das discussões sobre a Medida Provisória que flexibilizava o Código Florestal, quando Câmara e Senado divergiram e as pressões da sociedade civil surtiram efeito. “Acreditamos que a chance de aprovação é reduzida diante da péssima exposição que o projeto de lei traria ao país perante a comunidade internacional”.
CONSTITUIÇÃO
O professor Paulo Bassani, criador do Grupo de Estudos Avançados sobre o Meio Ambiente (Geama) da Universidade Estadual de Londrina, pesquisador das relações da sociedade com o meio ambiente, acredita que a mudança das regras de licenciamento está relacionada com uma visão ideológica do governo federal sobre a questão. “Desde 2004, a aprovação desta lei estava sendo barrada pelas organizações sociais compromissadas com a proteção da nossa biodiversidade e com as condições que garantam a vida no planeta”, lembra. “Agora a outra visão prevaleceu. E os que defendem este novo modelo são madeireiros, garimpeiros e fazendeiros com interesses escusos”, afirma. “Neste novo modelo, o capital, o mercado, o agronegócio estão sempre em primeiro lugar, com o argumento habitual de que geram empregos”.
Bassani lembra que a Constituição aprovada em 1988 contemplou a relação do homem com a natureza, a chamada consciência ambiental, reforçada pelo peso da realização da Rio 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o tema. Neste período, o Brasil havia se tornado um exemplo para o mundo. “O problema é que o que se seguiu foi a construção de uma democracia de baixa intensidade, que sempre se submeteu aos interesses do grande capital e do agronegócio”, avalia. “E foi quando a agricultura começou a avançar com força para áreas florestais do Cerrado e da Amazônia para alimentar o modelo agroexportador, ao lado da exploração mineral, ao mesmo tempo que grileiros, garimpeiros e madeireiros se aproveitavam desta situação para ocupar e destruir áreas de preservação e reservas indígenas”, enumera Bassani, explicando, na sua visão, como a legislação ambiental começou a ser considerada um obstáculo em muitas regiões do País.
“Acreditamos que, de forma direta, corremos o risco de perder uma legislação que foi construída democraticamente durante quase meio século de árduos trabalhos, que envolveram muitos setores da sociedade civil”, afirma André Dias, referindo-se à questão do licenciamento e também a outros pontos da agenda governista em relação ao meio ambiente. “Seria um imenso retrocesso e o sepultamento de uma legislação ambiental que norteou muitos outros países mundo afora. É urgente que a sociedade entenda que o direito da maioria deve prevalecer e evitemos o descumprimento dos preceitos que embasam o artigo 225 da Constituição Federal e regem os direitos desta e das futuras gerações”, analisa.

Setor produtivo teme alterações profundas no Senado
Em eventos recentes, o setor produtivo, por sua vez, diz temer alterações profundas no texto aprovado pela Câmara. José Carlos Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), lembra que a ausência de um marco legal para os licenciamentos gera uma série de prejuízos ao País, especialmente insegurança jurídica. “Não ter uma legislação unificada significa ter centenas de normas locais complexas e discrepantes, gerando insegurança a todos, desde o empreendedor até o Poder Judiciário, que busca soluções em ordenamentos intrincados e nebulosos. E esse é um dos maiores motivos de atrasos de investimentos em todo o país, inibindo a geração de empregos, paralisando a máquina pública e incentivando desvios de conduta”, diz em entrevista à Agência Senado.
O assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Rodrigo Justus, não acha necessária nenhuma alteração no texto que veio da Câmara. “Ele está dentro de todos os julgamentos que o Supremo Tribunal Federal tem feito. O texto buscou aquilo que é possível do ponto de vista de compatibilizar as normas constitucionais e considera a questão da estrutura dos órgãos ambientais. O projeto tem o equilíbrio necessário para cobrar daquelas atividades que têm um potencial poluidor ou degradador maior as exigências específicas para cada tipo de empreendimento”, argumenta.

