O alinhamento de setores das igrejas evangélicas à extrema direita e o aumento da influência dos neopentecostais na política ajudaram a colocar o conflito entre Israel e palestinos no centro do debate ideológico no Brasil. Apoiadores das políticas do governo israelense e em alguns casos baseados em interpretações da Bíblia, setores da direita têm chamado atenção para o conflito para tentar atingir o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e criticar a esquerda, que tem uma posição histórica pela criação do estado palestino.

Na semana passada, parlamentares da oposição cobraram que o governo brasileiro passe a reconhecer o grupo Hamas como terrorista e defenderam as ações do exército israelense em Gaza. Após o ataque do Hamas, no dia 7, a cúpula do Senado ganhou uma projeção da bandeira de Israel a pedido do senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), o senador Magno Malta (PL-ES) discursou enrolado em uma bandeira do país e o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) publicou em suas redes sociais uma notícia falsa a respeito de bebês israelenses que teriam sido decapitados por palestinos.

O principal alvo da direita é a suposta ligação entre a esquerda brasileira e o Hamas, grupo responsável pela administração da faixa de Gaza desde 2007 e responsável pelo ataques do dia 7. Pré-candidato à prefeitura de São Paulo, o deputado Guilherme Boulos (PSOL) foi um dos mais expostos por seu apoio à causa palestina. Na quinta-feira, o Itamaraty informou que não classifica o grupo como terrorista por seguir as determinações do Conselho de Segurança da ONU, que não inclui o Hamas na lista. Nas redes sociais, parlamentares de esquerda têm referendado a posição do governo brasileiro para que Israel abra um corredor humanitário e volte às negociações.

GUERRA FRIA

O apoio dos setores de esquerda à causa palestina começou no período posterior à Guerra dos Seis Dias (1967), explica Andrew Patrick Traumann, professor de especialização em História Contemporânea e Relações Internacionais da PUCPR. No conflito, Israel ocupou a Península do Sinai (Egito), a Faixa de Gaza (que era administrada pelo Egito) e as Colinas de Golã (Síria), em um contexto mundial de guerra fria entre Estados Unidos, que apoiava as ações israelenses, e União Soviética.

“Em 1967 também tivemos a Resolução 242 da ONU, que ordenava a retirada de Israel dos territórios ocupados, que não foi obedecida. Ao longo do conflito e durante a guerra fria, Israel passou a ser visto como colonialista, com apoio dos Estados Unidos, enquanto os palestinos seriam um povo oprimido por uma potência capitalista”, afirma Traumann. “Esse apoio foi se cristalizando até Yasser Arafat (líder da OLP e presidente da Autoridade Nacional Palestina, morto em 2004) ser identificado como um desses líderes do então chamado terceiro mundo”.

A ligação de Lula, lembra Traumann, é com Autoridade Nacional Palestina, principalmente na figura do presidente Mahmoud Abbas. “Disseram que o Hamas cumprimentou o Lula pela eleição. Gostem ou não, o Hamas é um governo, governos cumprimentam, é praxe”, diz o doutor em História. Mahmoud Abbas pertence ao Fatah, organização laica que foi derrotada pelo Hamas na eleição de 2006 na faixa de Gaza. Diferentemente do Fatah, o Hamas é um grupo fundamentalista islâmico e prega a extinção do estado de Israel.

Para Marco Antonio Soares, professor de Departamento de História da UEL, a posição crítica da esquerda a Israel decorre de uma influência da esquerda da França. “A esquerda francesa tem posições contra o estado de Israel. É tão crítica ao estado de Israel que esquece que o objetivo expresso do Hamas é a destruição de Israel”, afirma. “No Brasil, temos uma presença das tendências francesas da esquerda, nos campo marxista e fora dele. A esquerda defende o direito à autodeterminação dos povos e à autodefesa, mas trata Israel como se fosse uma invasão”.

FATOR RELIGIOSO

A ligação das igrejas neopentecostais com Israel é uma das responsáveis por colocar o conflito no Oriente Médio para o centro do debate ideológico, avaliam os especialistas. Para algumas dessas igrejas, a profecia bíblica só será cumprida quando houver a ”total libertação de Jerusalém”. Essa visão era comum entre protestantes que pregavam na televisão norte-americana na década de 1970.

“Até então eram as questões políticas e econômicas, mais recentemente entrou a questão religiosa. Isso ajuda a fortalecer a extrema-direita americana e a brasileira”, avalia Marco Antonio Soares. “A sociedade israelense também é influenciada. Líderes da direita sobem no monte do tempo (local sagrado para o islamismo), por exemplo. Isso é uma provocação para acirrar os ânimos com os árabes”.

Andrew Traumann também vê uma mudança no perfil dos apoiadores de Israel. “Nos conflitos anteriores, a defesa de Israel vinha dos liberais, que viam Israel como única democracia do Oriente Médio, um país com uma economia dinâmica”, lembra. “Só que, a partir do crescimento dos grupos evangélicos, houve até uma apropriação dos símbolos judaicos, vimos bandeiras de Israel em manifestações de grupos de direita”.

Essa aproximação pode ter se dado dar mais pelo fator eleitoral, e para manter uma base de apoio coesa, do que por questões religiosas. “Acredito que o ex-presidente Jair Bolsonaro surfou nessa onda, fez até a promessa de mudar as embaixada brasileira para Jerusalém", explica o professor, dizendo que ele sofreu pressão de um dos pilares do seu apoio, a bancada ruralista, que exporta para países árabes. "Ao mesmo tempo ele fortaleceu relações com países árabes alinhados aos Estados Unidos, como Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes”.

ACORDO COM A ARÁBIA SAUDITA

Para os especialistas, um fator que pode ter pesado no ataque do Hamas é a negociação para a normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita, que vinha sendo conduzida pelos Estados Unidos. Depois dos ataques de Israel na faixa de Gaza, a Arábia Saudita suspendeu o processo. “Pode ter havido uma influência do Irã com o objetivo de melar o acordo de paz”, afirma Traumann, que considera difícil a criação de um estado palestino nas atuais circunstâncias. “Acredito que é cada vez mais inviável por causa dos assentamentos, muitos colonos judeus estão lá e acham que estão cumprindo uma missão sagrada”.

Marco Antonio Soares concorda que um possível interesse do Irã em inviabilizar o acordo entre israelenses e sauditas pode ter influenciado no ataque do Hamas. “Até então os artefatos do Hamas eram tecnologicamente sofríveis. Nos últimos 25 anos, Israel construiu relações razoáveis com os seus vizinhos, como a Jordânia e o Egito, e agora vinha construindo uma ponte com a Arábia Saudita. O Irã é inimigo da Arábia Saudita e prega a destruição de Israel”.