Curitiba - Há 130 anos, completados neste domingo (13), a Princesa Isabel, então regente brasileira, assinava o texto que, ao menos no papel, acabava com os mais de 350 anos de escravidão no País. Os dois artigos da Lei Áurea são sucintos. Nada mais fazem do que comunicar aos súditos do Império que, a partir dali, estava extinto o regime escravocrata. Em que pese a rápida tramitação do projeto – foram cinco dias do envio ao Parlamento até a aprovação e a sanção -, especialistas lembram que o processo de abolição não só foi longo, como é inconcluso.

"Vale resgatar essa imagem de que foi uma lei passada super-rápido, sem muita contestação, porque vem daquela historiografia oficial. Na verdade, a lei de 13 de maio de 1888 está dentro de um processo muito mais longo, que durou praticamente todo o século XIX. A abolição foi uma política gradual e lenta, que começa em 1831, com a primeira lei anti tráfico. Depois, tem a pressão externa, encabeçada pela Inglaterra", conta o professor Gilberto da Silva Guizelin, do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Segundo ele, a influência internacional também se deu em função de interesses econômicos. "Precisavam de novos mercados para os produtos. E escravo não consome". Já a votação no Congresso não levantou muitas dúvidas porque todas as discussões tinham sido feitas antes. "Se a gente pegar a lei Eusébio de Queiroz, de 1850, ou a Lei do Ventre Livre, de 1871, elas dominaram a agenda do século. Em 88, quando da aprovação da Lei Áurea, a escravidão estava em declínio. Movimentos sociais também vinham chamando a atenção nos jornais e teatros da época. [A questão] tinha extrapolado as fronteiras das instituições políticas e era pauta nacional", completa.

Imagem ilustrativa da imagem Inconclusa, Lei Áurea completa 130 anos



Demanda republicana
A procuradora federal Dora Lucia de Lima Bertulio, ativista contra o racismo e mestre em Direito Público, vai além. "Se foi rápida [a aprovação] é porque não serviu para nada. Ou seja, todo o Império estava sendo pressionado por dois lados, o internacional, que não tinha mais interesse nas relações escravocratas, e o interno, no sentido de que queriam acabar com o Império e a abolição da escravatura era uma das demandas do processo republicano", afirma. Ela destaca que em 1888 o número de escravos já era reduzido. "Isso não significava que a população negra que não era mais escrava tivesse uma condição de vida de cidadania, como tinha a população branca".

Por essa razão, de acordo com a procuradora, a única mudança real foi que o grande proprietário deixou de ser o dono propriamente dito do negro. "Aquele que não era escravo não era o senhor que era dono da vida dele, mas a própria sociedade, que não lhe permitia qualquer tipo de avanço ou participação adequada. Hoje alguns, especialmente políticos, fazem todo um discurso dos 130 anos da abolição. Mas para nós, negros, isso significou apenas um acerto entre ruralistas, Império e republicanos, para de alguma forma mudar um pouco a cara do Brasil internacionalmente", acrescenta.

Para especialistas, discriminação e desigualdade social persistem

Curitiba - Tanto o professor Gilberto da Silva Guizelin, da UEL, como a procuradora federal Dora Lucia de Lima Bertulio avaliam a abolição como um processo inconcluso. "A Lei [Áurea] acaba com o regime de trabalho escravo, mas não acaba com as desigualdades sociais, porque não foi bem-sucedida no processo de integração do negro na sociedade (…) Uma vez aprovada e assinada a lei, o Estado se exime de discutir o lugar do negro. Aí a gente pode entender por que a população negra brasileira é aquela que sempre está em sub empregos, que não é pleiteada no sistema de ensino e no sistema de saúde", diz Guizelin.

"Se a gente pegar os últimos dez anos, quando começaram a surgir discussões como a política de cotas nas universidades e a lei que regularizou o trabalho das domésticas - vamos lembrar que boa parte das domésticas são mulheres negras, como a minha mãe, por exemplo, que foi doméstica a vida inteira... Quando vieram essas leis de inclusão social, reapareceu também o discurso conservador. [A abolição] não se concretizou como um todo. Pelo menos no seu sentido psicológico e social, o processo está incompleto", acrescenta o professor.

A ativista contra o racismo e mestre em Direito afirma que o movimento negro não comemora o 13 de maio como forma de diminuir no inconsciente coletivo a percepção de que a abolição foi uma benesse, concedida por uma princesa branca. "Não por ser branca, mas uma princesa, até porque ela não seria de outro pertencimento racial. Mas esse ato ficou por muito tempo glorificado como sendo ‘nossa, que bondade e gentileza’. Fomos ao longo do tempo colocando outras datas e outros movimentos como sendo importantes para a libertação da população negra", explica.

Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da UFPR, Lucimar Dias comenta que entende o movimento quando ele fala que não houve abolição, uma vez que a desigualdade se mantém. Entretanto, avalia ser necessário avançar com a discussão sobre políticas públicas. "A gente discute a partir de outra perspectiva, de reconhecer os avanços produzidos pelo movimento negro para que a desigualdade diminua e se efetive a lei. Não podemos dizer que vivemos sob o jugo da escravidão. Por isso, temos debatido muito as cotas, a permanência dos alunos na universidade e a baixa representatividade de professores negros", pontua.