SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A gestão João Doria (PSDB) autorizou a contratação de uma empresa ligada por cinco anos à OAS para agora assessorar o Governo de São Paulo em um conflito de centenas de milhões de reais contra a própria empreiteira baiana.

No último mês, a empresa de consultoria Alvarez & Marsal foi convidada pela Dersa, estatal paulista de rodovias com um passado de escândalos ligados aos governos tucanos, para atuar como sua consultora e assessora técnica em disputa extrajudicial relativa ao rompimento de contratos do Rodoanel Norte.

O convite se tornou público na quarta (30), quando a autorização foi publicada no Diário Oficial do estado. Envolve os seis lotes da obra, dos quais dois foram tocados pela OAS. Caso contratada, a empresa de consultoria ganhará aproximadamente R$ 3 milhões por quatro meses de serviço.

De abril de 2015 até março de 2020, a Alvarez & Marsal atuou como administradora no processo de recuperação judicial da OAS. Embora seja nomeada para o posto pela Justiça e não tenha conexão contratual, os serviços da empresa foram pagos pela empreiteira.

Procurado pela reportagem, o governo afirmou que ainda não concluiu o processo de contratação e, diante da controvérsia apresentada pela reportagem, "vai averiguar a questão para esclarecer se há impedimento".

A disputa entre o Governo de São Paulo e as empreiteiras começou no fim de 2018, quando a Dersa decidiu romper unilateralmente os contratos do Rodoanel Norte sob a justificativa de que as construtoras desmobilizaram os canteiros.

À época o governo disse que aplicaria multas às empresas, o que nunca aconteceu.

A OAS reagiu ao rompimento. Afirmou que o estado estava inadimplente com pagamentos e que tinha mais de R$ 100 milhões a receber, além de indenizações. O imbróglio foi parar na Câmara de Arbitragem, que envolve disputas de forma extrajudicial.

Atualmente, segundo pessoas que acompanham o conflito, só a disputa com a OAS está na ordem dos R$ 350 milhões.

Em 2019, o governo abriu concorrência para empresas que a ajudassem tecnicamente nas disputas relativas aos lotes 4 e 6 --que não envolvem a OAS, mas a empreiteira Acciona.

À época, a Alvarez & Marsal também chegou a ter autorização para ser contratada por R$ 2,1 milhões por 18 meses, mas houve um recurso administrativo e o aval foi revogado. Foi contratada a empresa HKA, por R$ 1,3 milhão.

Mais tarde, o escopo do serviço foi expandido para os lotes 1 ao 6, e a HKA passou a assessorar também o governo na disputa contra a OAS. Contudo, em agosto desse ano, com problemas internos, a empresa desmobilizou recursos no Brasil e rescindiu o contrato.

A Dersa não abriu nova concorrência pública para a realização dos serviços remanescentes e decidiu convidar empresas que poderiam terminar os trabalhos.

Tanto entre integrantes do governo como em empresas começou a circular a informação de que a Alvarez & Marsal poderia ser contratada novamente.

A reportagem questionou em 14 de setembro a Secretaria de Logística e Transportes, à qual a Dersa é vinculada, qual empresa o governo havia convidado para os serviços remanescentes, mas não houve resposta. Em 22 de setembro, a reportagem repetiu o questionamento.

A Dersa, na ocasião, respondeu apenas que "realiza neste momento um novo processo de contratação". Oito dias depois foi publicada a autorização de contratação da Alvarez & Marsal, pelos R$ 3 milhões.

O valor foi alvo de conversas com a Dersa, segundo troca de emails ao qual a reportagem teve acesso.

Em um email de 2 de setembro, Vinícius de Oliveira Daher, diretor da Alvarez & Marsal, a João Roberto José Paes, diretor de Engenharia da Dersa, afirma que faria "proposta comercial revisada, após esforço para convergirmos ao valor de referência da Dersa".

Em paralelo, uma empresa chamada Swot chegou a oferecer o valor de R$ 1 milhão pelo mesmo serviço, mas ela não foi uma das convidadas pelo governo sob a alegação de que não estaria em ranking internacional. A empresa rebate e diz que a firma e seu engenheiro chefe, Hilton Junior, são reconhecidos por publicações de referência.

Como administrador judicial da recuperação da OAS, competia à Alvarez & Marsal fiscalizar as operações da firma, verificar relação de credores e fiscalizar o cumprimento do plano de recuperação judicial.

Segundo a OAS disse à época, a Alvarez & Marsal não teria "nenhuma função administrativa nas empresas do grupo", embora seus serviços fossem pagos pela empreiteira.

Advogados especialistas em arbitragem consultados pela reportagem afirmam que, apesar de serem pagas pelas empresas em recuperação, administradoras judiciais não têm uma conexão contratual ou jurídica com elas. Por isso, em tese, não haveria conflito legal de interesses.

Contudo apontam ressalvas. O advogado José Nantala Badue Freire, do escritório Peixoto & Cury, diz que "em alguns casos, o administrador pode ter acesso a informações confidenciais e estratégicas da recuperanda, durante eventuais inspeções ou auditorias realizadas para levantamento do endividamento".

Ele também diz que se, em um processo arbitral, advogados ou técnicos que atuem para uma das partes tiverem "relacionamento pessoal ou profissional com a parte contrária ou com os árbitros, deve dar ciência disto aos envolvidos no processo arbitral, ou mesmo declinar da função, a depender do nível de relacionamento".

Segundo Freire, no limite, um eventual impedimento pode parar na Justiça. "A decisão sobre a existência ou não de conflito, bem como a sua influência efetiva no caso, cabe aos árbitros. Contudo, a depender do caso, isso também pode ser objeto de pedido de anulação da sentença arbitral no Judiciário, obedecidos os requisitos da Lei de Arbitragem e do CPC [Código de Processo Civil]", afirma.

Embora a extinção da Dersa tenha sido aprovada no ano passado, a empresa ainda continua a existir de forma mais enxuta, sobretudo devido aos processos que a envolvem. O Rodoanel Norte tem, atualmente, previsão de entrega da obra completa em 2023, com outras empreiteiras concluindo os serviços.

OUTRO LADO

Procurada, a Dersa afirma que irá esclarecer se há um impedimento em relação à contratação da empresa de consultoria.

"Cabe lembrar que o processo de contratação seguiu os requisitos previstos na legislação, incluído o Regulamento Interno de Licitação e Contratos da Empresa", diz a empresa pública.

"O novo processo de contratação foi necessário devido à rescisão unilateral do contrato com o escritório que prestava tal serviço. Assim, a Dersa, na forma da lei, convidou empresas que integram ranking internacional de assistência técnica para arbitragem de conflitos contratuais de engenharia em obras de grande porte", afirma.

O email da Alvarez & Marsal, afirma a Dersa, "consta nos autos do processo, faz parte dos procedimentos rotineiros antes da efetivação das propostas e demonstra que a Dersa buscou redução de valores para o serviço a ser prestado".

Também questionada, a Alvarez & Marsal diz em nota que "contesta qualquer suspeita de conflito de interesses e reafirma sua atuação sob rígidas normas internacionais de Governança Corporativa e de Compliance".

"A consultoria participou de concorrência aberta pela Dersa para prestar serviços de assessoria técnica em disputas arbitrais, em continuidade ao trabalho que não foi concluído pela empresa anteriormente contratada. Todos os critérios exigidos foram cumpridos e a proposta foi apresentada com valor de mercado compatível com processos dessa complexidade."

Também destacou que foi nomeada pelo juiz como administrador da recuperação da OAS, que tinha papel neutro e que o processo foi encerrado em março de 2020. A empresa não respondeu sobre o email enviado à diretoria da Dersa. Procurada, a OAS não se manifestou.