O projeto de lei que cria o Sistema Nacional Contraterrorista (SNC) tem um vício de origem e pode criminalizar a atuação de movimentos sociais, afirmam especialistas em Ciência Política e Direito Penal ouvidos pela FOLHA. De autoria do deputado Vitor Hugo (PSL-GO), o projeto 1.595/19 foi aprovado no dia 16 deste mês na Comissão Especial criada para discutir o tema e seguirá para o Plenário da Câmara dos Deputados, para análise e votação.

O deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), relator do projeto na Comissão Especial, espera que o presidente da Câmara, Arthur Lira, encaminhe em breve a proposta para votação no Plenário
O deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), relator do projeto na Comissão Especial, espera que o presidente da Câmara, Arthur Lira, encaminhe em breve a proposta para votação no Plenário | Foto: Luiz Macedo/Câmara dos Deputados

Originalmente, o projeto havia sido apresentado pelo então deputado Jair Bolsonaro, em 2016, e arquivado no fim daquela Legislatura, como determina o Regimento da Câmara. O deputado Vitor Hugo se baseou na proposta de Bolsonaro e apresentou um novo projeto em 2019, para regulamentar as ações estatais de prevenção e combate a ações terroristas. Atualmente está em vigor outra lei de combate ao terrorismo, a lei 13.260, de março de 2016, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff (PT).

Para especialistas ouvidos pela FOLHA, o primeiro grande problema de qualquer projeto dessa natureza é tentar estabelecer uma definição de terrorismo. “Não existe um consenso acadêmico sobre o que é terrorismo”, afirma Natali Hoff, doutoranda em Ciência Política pela UFPR e professora das universidades Uninter e Unicuritiba. ”Isso abre espaço para que esse tipo de legislação seja utilizada de acordo com interesses políticos. Esse projeto coloca na figura do presidente da República poderes para decretar medidas extraordinárias e vincula essas medidas a estado de sítio e de defesa, intervenção federal e GLO (garantia da lei e da ordem)”.

Natali Hoff cita o exemplo norte-americano para ilustrar a dificuldade de definição do terrorismo. “Havia uma definição de terrorismo no FBI, uma na CIA e outra no Departamento de Estado”, diz. “Terrorismo é um método que busca gerar uma mensagem de medo para inverter a lógica de coerção, geralmente contra o Estado, que detém o monopólio da força. Isso acaba tendo um caráter difuso, é difícil saber definir quais serão as táticas utilizadas. No fim das contas ficamos sempre com a definição de terrorismo feita pelo Estado, pelos que têm condições de realizar esse enquadramento”.

MANIFESTAÇÕES

O advogado criminalista João dos Santos Gomes Filho também avalia que a impossibilidade de se definir claramente o que é um ato terrorista abre o espectro para atingir protestos e manifestações. “É uma tentativa oblíqua de criminalizar os movimentos sociais, que têm recepção constitucional, têm apoio e incentivo constitucional”, afirma. “Bolsonaro estava em campanha em 2018 e já disse que queria criminalizar os movimentos sociais como terroristas”.

ESPIONAGEM

Em audiência pública que debateu o projeto de lei, em agosto, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) atenta sobre o risco do aumento da vigilância do Estado sobre os cidadãos. “Esse projeto de lei é para espionar a sua vida, vigiar a sua vida, prender as lideranças emergentes que estão surgindo nos movimentos sociais”, afirma Teixeira. Para a cientista política Natali Hoff, o risco é real. “Um dos pontos estabelece acesso ilimitado a dados de brasileiros que forem categorizados como investigados. É uma lei muito aberta, quem vai definir quem é passível (de ser investigado) é quem estiver aplicando a lei. Ficamos dependentes de agentes particulares, e isso é um risco”.

A especialista considera que os mecanismos já existentes deviam ser aprimorados. “Temos instituições com essa função, a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e o Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência). Se fosse para pensar em algum aprimoramento técnico, deveríamos trabalhar com essas agências que já existem”, defende. "O que temos com esse projeto é uma abertura, entendo a preocupação dos movimentos sociais".

O criminalista João dos Gomes Santos Filho avalia que o Brasil não tem ações que justifiquem a criação de um Sistema Nacional Antiterrorismo. “É um absurdo um país que não tem a menor tradição em ataques terroristas tratar da matéria. O PCC (o grupo criminoso Primeiro Comando da Capital) não tem viés terrorista, então combata-se o PCC do jeito certo. Criar um ambiente de terrorismo no Brasil é criminalizar movimentos sociais. Os terroristas serão os inimigos dele (Bolsonaro)”.

PREVENÇÃO

Para o deputado Vitor Hugo, o atual projeto é necessário porque a lei 13.260/16, atualmente em vigor, não trata da prevenção a atos terroristas. “A lei sancionada pela presidente Dilma só trata da vertente jurídico-penal, não trata da vertente da prevenção”, disse o parlamentar em um dos debates na Comissão Especial da Câmara. “Vemos agora tudo o que está acontecendo no Afeganistão, o Biden (o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden) deixou 65 bilhões de dólares em equipamentos nas mãos do maior grupo terrorista do mundo. E o Brasil, 20 anos depois do ataque às Torres Gêmeas, não tem uma legislação que estruture o sistema de prevenção e combate ao terrorismo”.

O parlamentar nega que o objetivo seja perseguir movimentos sociais. “O importante é que, sim, se proteja a possibilidade de as pessoas se manifestarem, isso é objetivo nosso também, a proteção do direito fundamental de manifestação, mas que isso não represente perigo à vida humana, à capacidade do Estado de tomar decisões e ao patrimônio público e privado”.

O deputado Ubiratan Sanderson (PSL-RS), relator do projeto na Comissão Especial, espera que o presidente da Câmara, Arthur Lira, encaminhe em breve a proposta para votação no Plenário. “Não temos que esperar acontecer aqui no Brasil uma ação terrorista para ter, então, uma legislação que trata dessas ações”, argumenta. “Não tenho a menor dúvida de que o projeto deverá ser votado na Câmara no momento oportuno, vencemos no mérito e em todos os destaques com larga margem”, afirmou o deputado na sessão em que seu parecer foi aprovado. A FOLHA tentou contato com Ubiratan Sanderson para que comentasse as críticas ao projeto, mas ele não deu retorno até o fechamento desta reportagem.

CORTE DE EXCESSOS

Rubens Bueno (CID-PR), diz que possíveis excessos do projeto devem ser corrigidos no Plenário
Rubens Bueno (CID-PR), diz que possíveis excessos do projeto devem ser corrigidos no Plenário | Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Relator de projetos que tratavam de terrorismo há cinco anos, o deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR) afirma esperar que os excessos sejam corrigidos durante a discussão no Plenário. Em 2016, ele fez um parecer contrário a um projeto que classificava como terrorismo a “motivação ideológica, política e social”, o que levou a Comissão de Relações Exteriores da Câmara a rejeitar a proposta. Bueno também foi o relator do projeto de lei 13.260/16, que regulamentou a expulsão do país de estrangeiros condenados ou acusados de envolvimento em atos terroristas.

"Isso precisa ser bem delimitado para que não se use desse subterfúgio para a perseguição de adversários políticos, o que é muito comum em regimes autoritários e que costumam rotular de terroristas aqueles que se opõem ao governo”, afirma Bueno. “É um projeto que precisa ser bem debatido e cujo texto final deve ser blindado de interpretações subjetivas. Temos que combater, mas não podemos criar uma legislação de caça às bruxas".