BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No primeiro embate direto desde a chegada ao Brasil da pandemia do coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o governador João Doria (PSDB-SP) trocaram acusações duras sobre a condução da crise sanitária.

Bolsonaro disse que o tucano não tem autoridade para criticá-lo após ter sido eleito em 2018 com sua ajuda e, depois, de ter lhe virado as costas. Já o Doria cobrou "serenidade, calma e equilíbrio", e ameaçou ir à Justiça se o governo federal confiscar respiradores mecânicos para doentes graves com Covid-19.

O duelo ocorreu durante a tensa videoconferência na qual Doria e os outros governadores do Sudeste, Wilson Witzel (PSC-RJ), Romeu Zema (Novo-MG) e Renato Casagrande (PSB-ES) discutiram a emergência nacional do vírus.

“Subiu à sua cabeça a possibilidade de ser presidente do Brasil. Não tem responsabilidade. Não tem altura para criticar o governo federal”, disse o presidente ao tucano. ”Se você não atrapalhar, o Brasil vai decolar e conseguir sair da crise. Saia do palanque”, afirmou Bolsonaro.

A altercação ocorreu depois de uma consideração final de Doria ao fim do encontro. "Peço que o senhor tenha serenidade, calma e equilíbrio. Mais do que nunca, o sr. precisa comandar o país".

A intervenção do tucano foi calculadamente pausada, sem alteração no tom de voz, dentro da tática de diferenciação entre ele e o presidente na condução da crise. Já Bolsonaro respondeu aos berros.

"Não aceito em hipótese nenhuma essas palavras levianas, como se vossa excelência fosse o responsável por tudo o que acontece de bom no Brasil", disse Bolsonaro, ladeado pelos ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Paulo Guedes (Economia).

"[Doria] acusa, levianamente, esse presidente que trabalha 24 horas por dia. Não aceitamos essa demagogia barata. Vossa excelência não é exemplo para ninguém. Senhor governador João Doria, faça sua parte", finalizou, questionando se o tucano tinha permissão de agir como "porta-voz dos governadores".

No final da manhã, Doria postou no Twitter sua versão dos fatos. Disse que apresentou suas propostas na exposição inicial. "Recebi como resposta um ataque descontrolado do presidente. Ao invés de discutir medidas para salvar vidas, preferiu falar sobre política e eleições. Lamentável e preocupante", escereveu.

Ainda no ambiente das redes sociais, o filho presidencial Carlos, vereador no Rio e gestor da estratégia digital do pai, disse que Doria "se coloca de vítima diante do óbvio". Voltou a o chamar de "isentão" e "Macron brasileiro", em referência ao presidente francês, Emmanuel Macron.

Antes, o tucano insistiu que não deve haver confisco de respiradores mecânicos para casos graves da Covid-19. "Não é hora aqui de termos questões burocráticas impedindo a aceleração da importação de equipamentos e insumos necessários à saúde pública. Peço ao ministro da Saúde, aí a seu lado, que compreenda que São Paulo é o epicentro da crise. Não confiscar respiradores. Se essa decisão for mantida, informo que tomaremos as medidas necessárias no plano judicial", afirmou o tucano.

Segundo participantes da reunião, o tucano recomendou equilíbrio ao presidente. Irritado, Bolsonaro afirmou que o Doria usou seu nome para se eleger e depois virou as costas como fez com os demais apoiadores.

A referência do presidente é em relação ao chamado BolsoDoria, quando o tucano declarou apoio e fez campanha para Bolsonaro no segundo turno da disputa presidencial de 2018. Eles romperam a relação política logo no início de seus mandatos.

O governador de São Paulo criticou o pronunciamento de Bolsonaro na noite de terça (24) logo no começo da sua fala. "Inicio na condição de cidadão, de brasileiro e de governador de São Paulo, lamentando os termos do seu pronunciamento ontem à noite à nação", disse.

"Estamos aqui, os quatro governadores do Sudeste em respeito ao Brasil e aos brasileiros, e em respeito ao diálogo e ao entendimento. Mas o senhor que é o presidente da República tem que dar o exemplo, e tem que ser o mandatário a dirigir, a comandar e liderar o país e não para dividir", continuou o governador em sua fala inicial.

Assim como Doria, os demais governadores lamentaram as declarações de véspera do presidente. Witzel disse que não seguirá as orientações do presidente.

Já Casagrande disse que nunca desejou tanto que um presidente estivesse certo em seu pronunciamento. Mas que, por questão de responsabilidade, não poderia pagar para ver. Ele também criticou as orientações dadas por Bolsonaro.

"Temos seguido a OMS (Organização Mundial de Saúde) e na hora que o presidente opina e tira o valor da pandemia, causa uma confusão e uma dúvida nas pessoas, podendo atrapalhar o trabalho dificultando nossa ação. A dúvida e incerteza é a porta do fracasso", afirmou Casagrande.

"Muito bom que a gente possa ter essa reunião para que o governo federal assuma a responsabilidade e, juntos, diminuamos o impacto social, econômico e na saúde", completou.

Na reunião desta quarta (25), os governadores pediram a Bolsonaro que aumente para 12 meses o prazo de suspensão da dívidas dos estados com a União. São Paulo e Bahia haviam obtido no Supremo Tribunal Federal decisão liberando o pagamento por seis meses.

Os gestores também pediram a antecipação do pagamento de parcelas da Lei Kandir, a recomposição do Fundo de Participação dos Estados a renegociação de dívidas dos estados com organismos internacionais. Este também foi o pleito de governadores de outras regiões.

Durante a tarde, em entrevista à imprensa, Doria voltou a comentar o embate com Bolsonaro e chamou seu pronunciamento na terça de "grave equívoco".

"Para os brasileiros de São Paulo, e eu represento 46 milhões de brasileiros, a intervenção do presidente Jair Bolsonaro e o conteúdo daquilo que ele disse foi absolutamente equivocado e em dissintonia inclusive com orientações do próprio Ministério da Saúde", afirmou Doria.

Para Doria, Bolsonaro "perdeu oportunidade de fazer pronunciamento sereno e demonstrar preocupação com as vidas". O tucano lamentou que o presidente prefira ouvir o gabinete do ódio do que o do bom senso.

O governador afirmou que, na reunião com Bolsonaro, externou sua decepção, mas sem fazer "colocação de ordem política" ou alterar o tom de voz. Mas que Bolsonaro respondeu de forma "intempestiva".

"Não é hora de separatismos, não é hora de rivalidades, é hora de todos estarmos juntos no combate a esta gravíssima crise. [...] Presidente, não politize a questão, não transforme isso em palanque político, nós não estamos transformando. Os 27 governadores estamos preocupados em salvar vidas."

Questionado sobre haver uma disputa política entre ele e Bolsonaro, Doria respondeu que "é uma briga pela vida". "Espero que o presidente Bolsonaro tenha humildade e recue nesse comportamento belicoso."

O tucano evitou dar opinião sobre eventual impeachment de Bolsonaro, afirmando que a decisão cabe ao Congresso. Doria, porém, afirmou com base em pesquisa Datafolha que Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda na crise do coronavírus.

Antes da vídeoconferência, Bolsonaro manteve nesta quarta-feira o tom adotado em seu pronunciamento da véspera sobre a crise do novo coronavírus, criticou medidas tomadas por governadores de restrição de movimentação de pessoas e defendeu o isolamento apenas para aqueles do chamado grupo de risco, como idosos.

O número de mortes por causa da Covid-19 subiu para 46 nesta terça-feira (24), segundo o Ministério da Saúde. É o maior salto em um único dia: 12. O primeiro óbito foi registrado no dia 17 deste mês. O país já soma, desde o início da crise do coronavírus, 2.201 confirmações da nova doença.

Em todo o mundo, até agora, são quase 440 mil casos e 20 mil mortes pelo novo coronavírus.

Parlamentares, entre eles o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), reagiram com perplexidade e irritação ao pronunciamento em que o presidente criticou o fechamento de escolas, atacou governadores e culpou a imprensa pela crise provocada pelo coronavírus no Brasil.