O primeiro mês do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi atípico e o presidente seguiu uma estratégia para marcar posições, avaliam cientistas políticos ouvidos pela FOLHA para avaliar os 40 primeiros do terceiro mandato do petista. Ao enfrentar crises inéditas, como a invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro, e a tragédia humanitária dos yanomami, Lula tentou passar uma imagem de força e mostrar a marca do novo governo. O mais recente passo nessa estratégia teriam sido as declarações sobre a taxa de juros e o papel do Banco Central (BC), o que tensionou o mercado financeiro.

Na semana passada, Lula classificou a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC de manter a taxa básica de juros, a Selic, em 13,75% ao ano, como uma “vergonha”. O presidente, que durante a campanha do ano passado havia criticado a independência do BC, disse que o presidente do Banco, Roberto Campos Neto, precisa “maturar” e “pensar”. No fim da semana, a base de Lula no Congresso desviou os ataques para a meta da inflação. A presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), classificou a meta fixada pelo BC, de 3,25%, de “inexequível” e disse que Campos Neto devia se explicar ao Congresso.

“Certamente o Lula não deu um espetáculo, não deu um chilique. Foram pronunciamentos calculados”, diz a cientista política Celene Tonella, professora de Ciência Política da Pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Maringá (UEM). “As decisões na economia são decisões políticas. Os juros altos prejudicam as pequenas empresas e diminuem a possibilidade de comércio. As pessoas não compram parcelado e o salário não acompanha o aumento das taxas de juros”.

Ela lembra que, nos dois primeiros mandatos de Lula, esse papel estratégico de tentar barrar o aumento da taxa de juros foi dado ao vice-presidente José Alencar, industrial que tinha trânsito com o empresariado. “Esse assunto não é novo, o vice de Lula nos primeiros mandatos, o José Alencar, era a principal figura que batia nos juros exorbitantes praticados no Brasil. Nem está se falando em acabar com a autonomia do Banco Central, mas sim em reduzir a taxa de juros”.

PARA A TORCIDA

Mestre em Ciência Política e professor do curso de Direito no campus de Londrina da PUCPR, Mário Sérgio Lepre avalia que a origem do problema é oposto: o BC precisa sinalizar com o aumento da taxa de juros por causa da linha estabelecida pela nova gestão quando o Congresso aprovou a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que autorizou o governo a ultrapassar o limite de gastos, em dezembro passado.

“Lula não quer que o BC seja independente, mas os presidentes da Câmara e do Senado já disseram não à proposta, por isso houve esse baque”, afirma Lepre. “O Banco Central aumenta os juros porque o governo vai gastar mais do que arrecada, então o papel dele é aumentar os juros para não corroer o valor da moeda. Lula não quer isso e no futuro teremos inflação. É o chamado imposto inflacionário, que o pobre paga”.

Para Rodrigo Horochovski, professor da pós-graduação em Ciência Política da UFPR, fica claro que as falas de Lula em relação ao BC buscavam marcar a posição do governo. “É nítido que é para marcar, acho muito improvável que a autonomia do Banco Central seja revertida, isso tem custos elevados do ponto de vista econômico em relação aos atores do mercado, principalmente do mundo financeiro. É muito mais jogar para a torcida, como o Bolsonaro jogou para a torcida”.

Horochovski avalia que há uma estratégia por trás dos atos do governo no primeiro mês. “Nos primeiros dias o presidente precisa adquirir legitimidade e mostrar força perante os atores políticos e me parece que é isso que ele vem tentando fazer. Temos diferenças bastante pronunciadas entre os dois governos. Tem a parte do governo que precisa continuar funcionando, mas a macropolítica, a visão mais ampla, muda”, afirma o professor. “Disseram que o Lula cometeu um deslize ao criticar o presidente do Banco Central, eu não vejo assim. Acho que tem uma estratégia, independentemente de achar bom ou ruim. Do ponto de vista estratégico não está errado”.

A Folha entrou em contato com os deputados federais Felipe Francischini (União Brasil-PR), Filipe Barros (PL-PR) e Tadeu Veneri (PT-PR) para que eles comentassem o primeiro mês de governo. Por meio de sua assessoria, Francischini (que integrou a base de Bolsonaro, mas cujo partido, o União Brasil, integra o governo Lula) informou que prefere não se manifestar neste momento. Barros e Veneri não deram retorno.

8 de janeiro

A professora Celene Tonella, da UEM, considera que os atos do dia 8 de janeiro tiraram do governo a tranquilidade geralmente verificada no início dos mandatos. “Em geral, no primeiro mês os presidentes têm tempo para colocar ordem na casa e fazer a transição. O Lula já iniciou tendo que lidar com uma tentativa de golpe e não se pode minimizar esse ataque, que foi bem orquestrado”, diz a cientista política. “Lidar com essa crise logo no início dificultou os primeiros passos. Isso somado a outras crises, como a crise humanitária dos Yanomami”.

A imagem do governo seria afetada caso não houvesse uma reação dura, avalia Rodrigo Horochovski, da UFPR. “Ele (Lula) foi firme no marco do estado de direito, como estamos em uma democracia a resposta foi firme dentro desse marco. Não só o Executivo, mas o Judiciário e o Ministério Público têm um papel muito importante no desdobramento de eventos como esse. Acho que o presidente foi hábil ao chamar de maneira rápida as demais instituições, inclusive os governadores”.

Não é a opinião do cientista político Mário Sérgio Lepre, da PUC-PR, para quem houve falhas na prevenção aos ataques e na resposta. “O governo demorou e agora as imagens estão sob sigilo. Antes do dia 8, o (ministro da Justiça) Flávio Dino estava dizendo que o governo tinha a Força Nacional e estava mapeando tudo. E de repente aconteceu e o governo não se moveu para nada”, critica. “Quem vai para a praça depredar é bandido e depredador. Tem lei para isso. As pessoas que estavam fora não podem responder por isso”.

Relação com o Legislativo

O cientista político Mário Sérgio Lepre, da PUC-PR, também considera negativa a forma como o governo vem negociando apoios no Congresso. Até o fim da gestão de Jair Bolsonaro, os deputados da base conseguiam a aprovação de emendas por meio do chamado orçamento secreto, julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro. “Era uma forma de obter recursos sem peregrinar pelos ministérios, o Congresso fazia a distribuição. Com o Lula isso aumenta, porque ele fez o furo no teto de gastos e entendeu que não é só para pagar o Bolsa Família. Passou a ter recurso também para os parlamentares”.

Na avaliação de Rodrigo Horochovski, da UFPR, Lula tende a consolidar os apoios mais rapidamente que Bolsonaro, que até 2020 apostava em uma base mais ideológica. “Bolsonaro levou mais tempo, em um primeiro momento desejou fazer um governo sem necessidade de coalizões, mas no Brasil não se governa sem uma coalizão e isso tem um custo”, comenta o professor. “Tem alguma relação com ideologia, se tem um Congresso muito distinto o custo da coalizão aumenta. Tem muito a ver com talento e habilidade”.

O ponto positivo para o governo, diz a professora Celene Tonella, da UEM, é a experiência de dois mandatos de Lula. “É uma base frágil, ele tem que acenar para o centrão. Isso faz com que Lula tenha que negociar com partidos que não são da sua base, como PL e PSD, e esses partidos tendem a ter um preço”, avalia. “Lula aprendeu isso nos dois mandatos dele e também no mandato da Dilma Rousseff (PT), a crise central foi não apoiar a recondução do Eduardo Cunha (MDB) à presidência da Câmara. É outro foco de tensão essa negociação, que certamente será ponto a ponto, projeto a projeto”.

A professora teme que a crise humanitária dos yanomami seja apenas a “ponta do iceberg” de uma crise ambiental maior. “É a parte mais sensível, a ponta do iceberg, mas os garimpeiros estão nessas terras, é muito difícil retirá-los de lá de uma maneira rápida. Eles podem avançar para outras regiões da Amazônia. Por outro lado, atrai atenção internacional e a possibilidade de se obter fundos para a conservação. Há agora a expectativa da vinda de recursos norte-americanos, já que o Lula está nos Estados Unidos”.

Reforma tributária

Imagem ilustrativa da imagem Em primeiro mês atípico, Lula segue estratégia para marcar posição
| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

O senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) critica a forma como o novo governo vem conduzindo as discussões sobre a reforma tributária, com duas propostas já rejeitadas pela Câmara e pelo Senado, as PECs 45 e 110. “É um começo muito ruim, tem que ventilar as ideias. Essas duas reformas estão aqui há mais de dois anos e não foram aprovadas. Tem que ter coisa nova, estamos apresentando uma solução viável, a PEC 46, que eu assino como autor, mas que foi feita pelo movimento Simplifica Já”.

Guimarães também considera negativas as declarações de Lula sobre o BC. “É uma maneira de expiar a própria culpa. Um governo que não tem muita saída para a economia põe a culpa no presidente do Banco Central. Se o juro está alto, é por causa da inflação. Se existe inflação é por causa dos déficits sucessivos do governo federal”.

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