Imagem ilustrativa da imagem Disputa política atrapalha início da vacinação contra Covid no Brasil
| Foto: Gil Cohen-Magen/AFP

Não há dúvidas de que existe vacina eficaz para o combate do coronavírus. Mas para os brasileiros, por enquanto, só restam incertezas e imprecisões. Não era para se esperar diferente. Desde o início da pandemia, não há um discurso organizado para debelar o espalhamento do vírus pelo País. A Justiça por vezes precisou ser acionada para mediar responsabilidades e garantir que medidas mais rígidas fossem tomadas. Agora, enquanto vemos americanos e britânicos começarem a ser imunizados, assistimos internamente duelos eleitorais intermináveis, entre promessas sem datas. As ações para controlar os danos da Covid-19 – que são o fundamental - parecem apenas efeitos colaterais, em vez de serem remédios eficazes para o mal que nocauteou o mundo em 2020.

Politicamente, o cenário é claro. Liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, que nem partido político tem, o governo federal é a imagem de seu humor. Após substituir dois ministros da Saúde que buscavam ser alinhados com as orientações científicas, o general Eduardo Pazuello, um especialista em logística, foi de interino a titular, mas mostra que sua principal virtude é ser fiel ao chefe. Próximo a encerrar o ano, o governo não se preparou para comprar agulhas e seringas, enquanto a famigerada cloroquina – que nunca foi eficaz para a virose – se aglomera nos estoques federais.

“Temos um caminho tortuoso e difícil porque o presidente é pouco versado em ciência. E a forma que governa parece inspirada em um filme do Jean-Claude Van Damme - ‘Retroceder Nunca, Render-se Jamais’. Quando ele escolhe o que fazer, jamais volta”, critica o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.

Como em política não existem vácuos de poder e sempre que surge uma brecha há quem queira ocupar o protagonismo, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB) – já com a mira voltada para a vaga no Planalto em 2022 –, se fez valer do poderio econômico e técnico do estado que comanda e se associou, por meio do Instituto Butantan, à chinesa Sinovac para a testagem da vacina Coronavac. Antes mesmo da divulgação da conclusão dos testes, Doria lançou seu próprio plano de vacinação numa típica tentativa de aplicar um xeque mate no Planalto.

“É fato que o governador fez o dever de casa e buscou uma solução. Não há crime em política querer ser o salvador da pátria. Fernando Henrique Cardoso se elegeu como pai do Plano Real, Lula se reelegeu e fez Dilma Rousseff presidente com avanços nas áreas sociais. Doria quer se cacifar com a vacina. Isso faz parte do jogo”, aponta Prando.

TEMPESTADE

Como mais uma parte do enredo baseado numa história persecutória entre conservadores e comunistas, Bolsonaro viveu a tempestade perfeita. Seu principal antagonista, Doria, se uniu à vilã-mor para seu governo, a China, e o governo federal fez como única aposta a vacina elaborada em parceria entre a Astrazeneca, Universidade de Oxford e a Fiocruz, que acabou tendo os estudos atrasados por questões técnicas. O resultado foi precisar apresentar na quarta-feira (16) um plano nacional de vacinação ainda sem imunizante definido, assim como sem data para começar a ser aplicado.

O País confiou em um caminho que já era habitual. Reconhecido mundialmente pelo programa de vacinação em massa, o Brasil tem como prática a compra de tecnologia e a fabricação própria de seus imunizantes. Seria assim com a tecnologia assinada com a universidade inglesa e Biomanguinhos. “A decisão tomada pelo País explica o momento que vivemos. Numa situação pandêmica, isso é um problema. Nenhuma vacina pode ser descartada”, explica a epidemiologista Karin Luhm, professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Parte do discurso ideológico pregado por Bolsonaro e seus apoiadores circunda a desconfiança geral nas vacinas – em especial na do Butantan –, a ponto de o presidente já ter afirmado que não pretende se vacinar. Mas isso não é uma garantia. Após chamar a Covid-19 de “gripezinha”, já desmentiu a si mesmo. Nenhuma de suas afirmações pode ser considerada uma sentença definitiva.

Professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFPR, Luhm explica que os diferentes centros de pesquisa escolheram técnicas variadas para buscar um imunizante. Longe do que a propaganda anti-vacina busca descredibilizar o trabalho do Butantan, ela explica que a técnica aplicada na Coronavac é uma das mais conhecidas e nada tem de obscura. “É uma forma de produção clássica, que utiliza o vírus inativado. A questão é que precisa de muita segurança para a cultura do vírus e o preparo da vacina, o que pode ser demorado para larga escala. Mas já conhecemos esse método. Por exemplo, na vacina da gripe”, explica, lembrando. “O que a Coronavac precisa é se mostrar eficiente”.

DESIGUALDADE

A discussão sobre a obrigatoriedade e a necessidade de um termo de responsabilidade para a vacinação em período emergencial criam um clima de maior insegurança num cenário que já não é dos mais promissores. Mesmo com o início da vacinação, a realidade de uma proteção ampla ainda é muito distante. Os novos imunizantes, apesar de se mostrarem seguros, conforme apresentam os estudos, precisarão apontar o tempo em que serão eficazes.

Ainda será preciso ver a capacidade de se criar a chamada imunidade de rebanho, quando uma parcela generosa da população está protegida. O plano imediato é conter mortes e controlar a disseminação do coronavírus. “Países ricos já reservaram 51% das doses de vacinas contra a Covid-19, mas têm menos de 14% da população. Isso é um problema sério e a desigualdade é mais um desafio que o Brasil terá que enfrentar. Imagina se estados e municípios saírem sozinhos tentando comprar vacina?”, questiona o farmacêutico Airton José Petris, diretor do Centro de Ciências da Saúde da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

A relação entre as dimensões do nosso País e o tamanho dos desafios para que as vacinas cheguem à população é proporcional. Num território em que parte das pessoas vive em margem de rios, rincões no sertão, onde até água é rara e o posto de saúde mais próximo fica a muitos quilômetros de distância, os cálculos para a distribuição são exagerados, conforme estima Petris. “Esta será a tarefa do século, vai determinar padrões que nunca tivemos demandas até agora. Além das questões de logística, precisamos treinar pessoal, as universidades precisam capacitar os alunos”, alerta.

Mesmo assim, o cientista elogia o avanço que o mundo alcançou e que o nosso governo ainda precisa alcançar. “A tecnologia não põe as pessoas em risco. Temos que estar atentos à eficácia e aos níveis de segurança. Até pouco tempo ninguém conhecia o vírus e agora se tem técnicas para enfrentá-lo, mas o trabalho está longe de terminar”, afirma, lembrando que máscaras, higiene e isolamento deverão permanecer por um bom tempo. Além da vacina, é preciso paciência e persistência.