O presidente Jair Bolsonaro discursa na Assembleia Geral das Nações Unidas
O presidente Jair Bolsonaro discursa na Assembleia Geral das Nações Unidas | Foto: Johannes Eisele/AFP

A explicação sobre tradição de o Brasil ser o primeiro país a discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas é incerta. Há quem defenda ser um prêmio de consolação por não ter sido alçado como membro fixo do Conselho de Segurança. Outra possibilidade passa pelo esforço do então chanceler Oswaldo Aranha para a fundação do organismo e na criação do estado de Israel. A regra tácita nunca se tornou uma norma por escrito, mas a certeza é que a honraria representa a importância brasileira no tabuleiro dos jogos diplomáticos. Passados os anos, e com as oscilações no posicionamento político-ideológico dos governos brasileiros, o trabalho do Itamaraty também sofreu consequências, apesar de os preceitos das relações internacionais serem regidos pela Constituição. “A identidade da diplomacia brasileira de hoje é um tanto esquizofrênica. O governo nos trata de uma forma que não somos vistos no mundo: como um grande país ocidental. O conceito é questionado considerando as nossas origens e trajetória, especialmente se comparado a outras nações como, por exemplo, o Canadá”, explica Vinícius Vieira, professor do curso de MBA de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas.

icon-aspas “É limitado pensar que as ações dos governos passados serviram exclusivamente aos seus interesses políticos. Na verdade, buscaram, a partir de ênfases distintas, garantir os interesses internacionais do País”

O posicionamento do governo do presidente Jair Bolsonaro em relação à administração do republicano Donald Trump ganhou enorme destaque e, aparentemente, é nossa via diplomática preferencial. A relação Brasil e EUA já passou por diversas intensidades e formas, mas jamais permaneceu distante de forma ideológica. Especialistas, no entanto, apontam que os países têm diferenças de agenda. O que pode ser notado na recente decisão dos americanos em não endossar a campanha brasileira para entrada na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), uma espécie de clube das nações mais ricas. O tom áspero do discurso internacional de Bolsonaro, marcado pelo nacionalismo, e em algumas vezes pouco diplomático, vem apontando um caminho espinhoso para os próximos anos. “Já tivemos outros governos de vertente de direita, que confiaram na diplomacia profissional. O atual posicionamento tem um custo da imagem política e econômica. É possível ver a relutância dos europeus em assinarem o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Tem ficado claro que a ideologia sobrepõe o pragmatismo”, opina Vieira.

Historicamente, em especial no período atual pós-redemocratização, apesar de diferentes ênfases, os princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil foram observados e os projetos estratégicos de longo prazo, preservados. Um exemplo é o próprio Mercosul. O bloco criado no governo de Fernando Collor teve papel importante durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula. “O governo FHC enfatizou a inserção internacional do País via adesão aos diversos mecanismos multilaterais, como a OMC, instituição que em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, elegeu o brasileiro Roberto Azevêdo como diretor-geral”, lembra a doutora em Política Internacional Larissa Rosevics, da faculdade de Relações Internacionais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que critica a visão sobre a ação diplomática de outras gestões. “É limitado pensar que as ações dos governos passados serviram exclusivamente aos seus interesses políticos. Na verdade, buscaram, a partir de ênfases distintas, garantir os interesses internacionais do País”, opina.

LIDERANÇA

Parte dos planos dos governos do PT (Partidos dos Trabalhadores) foi o de ampliar a rede da diplomacia brasileira, em especial em áreas dos países mais pobres, numa tentativa de aumentar a liderança mundial do Brasil. Esta era uma das principais ambições do ex-presidente Lula. “O PT começou a ter falhas de percepção a partir de quando teve grande popularidade e do bom momento econômico. Eles se sentiram soltos para cumprir a própria agenda. Se aproximou muito da China e se afastou dos EUA, que consumia muitos industrializados, o que trouxe prejuízo para a nossa economia”, avalia Vieira. Nesse movimento expansionista, houve um número recorde de abertura de novos postos. Segundo dados do Ministério das Relações Exteriores, entre 2003 e 2013, nas gestões do PT, foram abertas 77 representações do Brasil no exterior, em países como Congo, Libéria e Maláui. “Era um momento em que se apostava no crescimento econômico do País, mas o que aconteceu foi um enorme erro de planejamento, visto que a crise já se aproximava e os custos da diplomacia são medidos em dólar”, explica uma fonte do Itamaraty, que preferiu não se identificar.

FECHAMENTO

Não foram raras as notícias ao longo do governo Dilma e mesmo na gestão de Michel Temer de uma lista de problemas de custeio de embaixadas e consulados, expondo aos diplomatas brasileiros enfrentarem situação extremas como a de corte de luz e atraso no pagamento dos aluguéis das representações. Desde então o ministério já iniciou o fechamento de sete embaixadas em países do Caribe e da África. “O fechamento desses postos são movimentos que devem acontecer de forma muito delicada, para que não pareça que há abalo nas relações entre os países. Então atualmente a linha de trabalho do Itamaraty é de extremo contingenciamento, como nos demais ministérios”, explica o diplomata em conversa com a FOLHA. Sob a batuta do chanceler Ernesto Araújo – alçado ao posto máximo antes de atingir o topo da carreira, uma prática inédita na diplomacia brasileira –, opiniões contrárias aos ideais bolsonaristas não são bem-vindas. “Há uma enorme resiliência por parte dos diplomatas. Muitos acreditam que é uma vida confortável em postos como Paris, mas estes são poucos exemplos. Temos que estar presentes em áreas conflagradas e de acidentes naturais. Nosso corpo técnico tem grandes nomes”, defende a fonte ouvida.

icon-aspas "Claro que, como toda política pública, as decisões de política externa precisam ser avaliadas periodicamente”

Além do crescimento no número de postos, houve um expressivo número de novos diplomatas que ingressaram pelas turmas do Instituto Rio Branco, tradicional centro formador da chancelaria brasileira. Entre 2006 e 2010, a média de formandos por ano saltou de 20 para 100. Em cinco anos, o crescimento do corpo técnico do Itamaraty foi grande, entre aposentados e novos profissionais, o número saltou de 1.213, em 2006, para 1.571, em 2010. Atualmente, o ministério conta com 1.550 diplomatas. “Não é ruim ter um número maior de pessoas trabalhando, mas tivemos uma expansão muito rápida e que não se sustentou como planejamento”, explica o funcionário do Itamaraty. A própria especialista da UFRJ alerta que o trabalho precisa ser feito com a devida organização. “É estratégia de longo prazo que visa diminuir as vulnerabilidades do País às mudanças políticas e às crises econômicas internacionais. Claro que, como toda política pública, as decisões de política externa precisam ser avaliadas periodicamente”, analisa Rosevics.

Entre os diferentes rumos e o histórico positivo do trabalho da diplomacia brasileira, o fato é que o papel do País no cenário mundial é diverso. Com enorme extensão de território, população e um portentoso mercado consumidor, o Brasil, apesar de sua grande importância, é tratado como pequeno. “O Brasil tem chances de galgar melhores posições, mas antes precisa fazer a lição de casa. Não podemos cobrar o espaço sem força. Internacionalmente, isso é medido de duas formas. Através da economia, que temos tido problema, e da força militar. Mas como não vivemos numa zona quente de conflitos, nunca fomos levados a fazer uma corrida armamentista”, explica Vieira. Já para Rosevics, falta um posicionamento político estável para que o papel do País no mundo seja estabelecido. “O que faz nos apequenar é o afastamento dos principais debates globais, como as questões ligadas ao meio ambiente, direitos humanos e comércio internacional”, pondera. Um emaranhado de questões a serem tratadas globalmente, enquanto, internamente, os consensos sobre as matérias estão bem distantes do horizonte.