Foi com sotaque paranaense que o termo delação premiada entrou no vocabulário da vida pública brasileira. Em dezembro de 2003, o doleiro londrinense Alberto Yousseff assinava seu acordo com a Justiça no rumoroso Caso Banestado, inaugurando um novo capítulo na luta dos órgãos de controle contra a corrupção e o crime organizado.

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| Foto: Comunicação Social/JFPR

Mais de 17 anos depois, de tão usado na Operação Lava Jato o instituto passou de desconhecido a controverso, de uma promissora novidade no processo penal ao símbolo de uma investigação sob severo ataque.

Na política, o debate sobre a legalidade e eficácia da colaboração premiada (termo de preferência dos operadores do direito) entrou no liquidificador da polarização política a quatro mãos. O desgaste é ambidestro.

A esquerda contesta os métodos usados pelos procuradores do Ministério Público Federal, sua suposta parcialidade e seu suposto abuso de poder - a condenação e prisão do ex-presidente Lula seria o maior exemplo de um voluntarismo golpista da força-tarefa, reforçada nesta semana com a decisão monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin de anular todas as sentenças condenatórias relacionadas ao líder petista.

Da mesma forma, a direita comandada pelo presidente Jair Bolsonaro também partiu para a ofensiva contra o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, herói máximo da República de Curitiba e atual desafeto, e que é alvo de julgamento de suspeição na Suprema Corte por sua atuação como juiz da Lava Jato na 13ª Vara Federal na capital do Estado.

Para descapitalizar politicamente o magistrado e agradar aos novos aliados, o governo se reposicionou em relação aos movimentos de campanha, adotou o revisionismo de ocasião, desativou a blindagem oficial da investigação e deixou reverberar mais alto a voz dos críticos.

O calor da política, entretanto, é apenas um dos ambientes de julgamento da Lava Jato, dos seus vazamentos à imprensa e dos seus acordos com os réus. No ambiente jurídico, o tema pulsa, em especial no direito criminal. Afinal, como a nova geração de advogados criminalistas enxergam o instituto da delação premiada, usado 209 vezes apenas na vara paranaense da operação? Qual a visão destes profissionais forjados durante discussões acirradas nas salas de aula das escolas de direito?

PREPARO TÉCNICO

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| Foto: Gabriel Melhado/Divulgação

Para o advogado criminalista João dos Santos Gomes Neto, de 28 anos, a aplicação da delação premiada no Brasil esbarra na falta de preparo técnico dos promotores e dos juízes em lidar com o direito negocial, mais presente nos estudos e cotidiano de outros ambientes jurídicos, como o norte-americano ou o inglês.

“A proporcionalidade entre o benefício concedido ao delator e a contribuição que ele fornece para a investigação é fundamental para a consistência do acordo. Caso contrário, corre risco de nulidade", alerta Gomes Neto. "No Brasil, as escolas de direito não abordam o tema e como ele se relaciona com nosso ordenamento jurídico", analisa.

Na visão de Gomes Neto, a aplicação dos acordos precisa estar melhor enquadrada nos valores e tradições do nosso sistema jurídico, embora reconheça que houve avanços com a entrada em vigor da Lei 13.964/2019, conhecido como Pacote Anticrime, que alterou 51 artigos do Código Penal e 17 leis especiais.

Antes desta espécie de regulamentação, o instituto era aplicado com base no princípio da discricionariedade (liberdade de escolha dentro do arcabouço legal) dos magistrados, o que, conforme o criminalista, abriu caminho para decisões incoerentes com a "racionalidade do sistema".

Para ele, a Operação Lava Jato é um exemplo que não deve ser seguido neste aspecto. "É preocupante pensar que muitos magistrados e promotores são influenciados por esta investigação, que abriu um precedente perigoso. A aplicação da justiça negocial não pode abrir mão do contraditório e da ampla defesa. A última palavra deve ser do réu, e não do delator", avalia.

E se o enfrentamento ao poderio do crime organizado e suas ramificações em grupos políticos dominantes justificasse uma atitude mais agressiva para a obtenção de resultados, com as delações sendo a escada para esta finalidade? Gomes Neto rechaça a tese, recorrente entre muitos lavajatistas. “Há uma inversão neste raciocínio. Porque é um grupo de cidadãos que nega a política, que despreza a política, mas que querem levá-la para um lugar que não é dela, que é necessariamente técnico, a ação penal. Esta tolerância ao abuso de poder é uma ameaça à democracia. É querer impor os seus valores de vida à coletividade, algo idêntico a uma ditadura”.

IMPORTÂNCIA E DESVIRTUAMENTO

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| Foto: Divulgação

Outra jovem criminalista, cujo escritório atendeu réus da operação, a curitibana Camila Saldanha Martins ressalta que o instituto pode ser um instrumento de “extrema importância” no desmantelamento de organizações criminosas. “Muitas vezes são organizações de difícil abordagem, nas quais a polícia, os promotores e os juízes não conseguem alcançar sem os acordos”.

No entanto, ela observa que a delação foi importada de outros ordenamentos jurídicos e, desta maneira, acabou desvirtuada dos seus propósitos. “Um exemplo é a costura de acordos com réus presos, algo comum na Lava Jato. Além da desvantagem flagrante de uma parte em relação à outra, uma pessoa sob custódia aceita qualquer negócio e pode incluir informações falsas, incompletas ou imprecisas no depoimento, com o intuito de se livrar daquela situação”, explica.

Segundo ela, a prisão cautelar não pode ser o primeiro passo da investigação rumo ao acordo. “É muito temerário. Normalmente o processo está no início e não há elementos suficientes para uma negociação segura. O ideal é que o acordo seja pautado pela voluntariedade do réu, com uma informação sólida e relevante para a investigação”, opina.

Para Camila, os deslizes podem ser explicados, presume, no contexto de espetacularização dos trabalhos dos promotores e do Judiciário durante a operação. “O público aguardava novidades todos os dias ao acompanhar o noticiário. Havia uma pressão sobre os procuradores, que afinal de contas são servidores públicos e não heróis. Eles se tornaram então reféns deste papel imposto de fora para dentro. Ou por se sentirem cobrados ou por se sentirem mais poderosos do que realmente eram”. Neste sentido, a advogada avalia que o legado da operação trouxe mais prejuízos do que benefícios para o ambiente do direito penal. “A lição que fica depois de toda esta experiência é que comportamentos como os dos integrantes da força-tarefa podem se tornar um tiro no pé, com resultados decepcionantes para o público, até mesmo com anulação de sentenças”.

Ex-procurador diz que delação aprofundou investigações

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| Foto: Rodolfo Buhrer/Folhapress

Do outro lado, o lavajatismo se jacta do seu pioneirismo em enfrentar um tabu nacional, a punição com cadeia para ricos e poderosos, com o bônus da devolução de um montante bilionário de recursos para os cofres da Petrobras e da União, tudo isso obtido com a ajuda decisiva do instituto da delação premiada. “O combate aos crimes de colarinho branco enfrenta organizações muito sofisticadas. Os acusados não terão nenhum interesse em revelar detalhes do esquema se não forem beneficiados de alguma forma, no caso a redução da pena”, adverte o procurador aposentado Carlos Fernando dos Santos Lima, protagonista da força-tarefa do MPF e hoje consultor de compliance (protocolo de legalidade na rotina empresarial).

Santos Lima sustenta que o instituto foi decisivo para a abrangência e profundidade da investigação e um dos pilares para o escrutínio da organização. Ele cita as delações do ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, que expôs os elos políticos da atividade criminosa e do próprio doleiro Alberto Youssef, que ajudou a desvendar a engenharia financeira da organização.

“É uma bola de neve. As colaborações dos réus geram novas investigações, que geram operações, que geram uma pressão sobre os criminosos, que, por sua vez, geram novas colaborações”, defende o ex-procurador.

E os supostos abusos para que a parte aceite o acordo de delação? “Quando a investigação se mostra eficiente, a preocupação dos membros da organização investigada aumenta e eles buscam defender os próprios interesses em detrimento da organização em si. É algo natural”.

E prossegue: “Mais de 80% das delações foram feitas com pessoas que estavam soltas. E elas não pensaram no interesse da Petrobras ou do país. A colaboração é uma saída para se obter uma vantagem pessoal. Quanto aos que estavam presos, diria que os criminalistas estão agora fazendo uma apologia contra o direito de defesa deles. Jamais o Ministério Público Federal procurou um réu detido para firmar um acordo sem que este tenha informado expressamente o desejo ao seu advogado”, garante.

RESISTÊNCIA

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| Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Em recente artigo no jornal O Estado de S.Paulo, a advogada criminalista Beatriz Catta Preta, contratada por nove investigados na Lava Jato, fez uma defesa do instituto e lembrou que a maior investigação da história do Brasil quebrou parte da resistência ao seu uso nas ações penais. “Houve resultados benéficos visíveis, seja para os investigadores, seja para os réus. A colaboração premiada passou a ser reconhecida pelos mesmos que a criticavam, como meio de defesa inerente ao processo criminal”, escreveu.

“Com a utilização da delação premiada o cenário penal do Brasil mudou radicalmente, trazendo uma possibilidade, até então resistente, de aproximação das partes do processo (acusação e defesa), atuando em busca de um fim comum (cada um em busca de resultados específicos), criando um cenário de consenso”.

Para ela, “o papel do advogado é expor e explicar todos os meios de defesa disponíveis e legais, caso a caso, com todos os seus ônus e consequências”. E mandou um recado para aqueles que ainda consideram os acordos como meros casos de deslealdade ou traição. “A decisão será, sempre, do cliente (réu ou investigado). Não cabe julgá-lo por essa escolha. Assim como não cabe, igualmente, julgar o profissional que defende o colaborador”.