As redes sociais amanheceram nesta terça-feira (10) com diversos posts e imagens dos manifestantes radicais que invadiram as sedes dos Três Poderes, no último domingo (08), afirmando que estão vivendo um cenário semelhante ao Holocausto. Usando termos como "campo de concentração do Lula" e "Holocausto brasileiro", os detidos disseram estar enfrentando condições subumanas.

Eles aguardaram a transferência para o presídio da Papuda na Academia Nacional da Polícia Federal, em Brasília.

Mas chamou atenção o fato dos detidos, segundo as mesmas imagens compartilhadas nas redes sociais, estarem com os celulares. Nos vídeos, também é possível notar garrafas de água e pessoas fazendo as refeições. A reportagem conversou com especialistas para conferir a legitimidade da analogia entre a situação dos detidos e o Holocausto de judeus e outras minorias.

Imagem ilustrativa da imagem Comunidade judaica reprova comparação da prisão de radicais com Holocausto
| Foto: Montagem sobre foto

O Holocausto

O coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, Carlos Reiss, explica que o Holocausto foi um processo sistemático de discriminação, perseguição e tentativa de aniquilamento de judeus e outras minorias, que começou na Alemanha em 1933.

Reiss destaca que, além dos judeus, pessoas com deficiências, com transtornos psicológicos, homossexuais, testemunhas de jeová, ciganos, negros, comunistas, anarquistas, poloneses, eslavos e chineses também foram perseguidos e assassinatos. “A estimativa é de que mais de seis milhões de judeus tenham sido mortos até 1945. Em relação aos demais grupos, os dados são imprecisos, mas os estudos indicam que os números também chegam na casa dos milhões”, explica. Segundo ele, as perseguições e mortes eram motivadas por diferenças étnicas, sexuais, ideológicas e políticas.

Como um dos termos utilizados pelos detidos nos atos golpistas, o coordenador destaca que os campos de concentração eram utilizados, primeiramente, pelo governo nazista para manterem os ‘inimigos do Estado’ longe da sociedade. Posteriormente, foram utilizados para confinar, em condições adversas, judeus, ciganos, negros e demais grupos minoritários.

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| Foto: Montagem sobre foto

“Vários modelos de campos foram construídos, como o de concentração, o de trânsito, de trabalho forçado e de extermínio. Um só campo possuía várias dessas funções”, ressalta. O Brasil recebeu entre 20 e 25 mil pessoas que fugiram dos horrores do Holocausto; o Paraná foi um dos estados que mais recebeu judeus, que vieram, principalmente, para cidades como Curitiba, Ponta Grossa e Rolândia.

Carlos Reiss também esclarece que a história da humanidade, e não só a do século XX, pode ser dividida entre o antes e o depois do Holocausto. “Após o Holocausto, houve um esforço internacional para fortalecer ideiais voltados à defesa dos Direitos Humanos, como a ONU (Organização das Nações Unidas), a Carta Universal dos Direitos Humanos, o Tribunal Penal Internacional e as conferências para discutir a situação de refugiados, migrantes e apátridas”, detalha.

Para Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto, comparação feita pelos extremistas é `uma grande desonestidade histórica e ética´
Para Carlos Reiss, coordenador do Museu do Holocausto, comparação feita pelos extremistas é `uma grande desonestidade histórica e ética´ | Foto: Giuliano Gomes/Divulgação

COMPARAÇÕES

Apesar de ser uma missão complexa, Carlos Reiss ressalta que é importante que sejam feitas comparações entre o nazismo e o Holocausto em relação a outras situações. “Se você não trabalha com essas comparações, você perde a oportunidade de tirar lições a partir desse tipo de tragédia”, explica. Entretanto, ele afirma que as pessoas devem tomar muito cuidado com analogias equivocadas, que vulgarizam o termo e a história que ele carrega.

“Muitas pessoas usam esses termos para caracterizar o adversário ou o inimigo como uma pessoa má, já que o Holocausto e o nazismo são utilizados como exemplos do que é o mal absoluto”, explica. Segundo ele, agir dessa forma é como imaginar que todo mundo que discorda ou que age diferente é um ‘Hitler em potencial’.

No último domingo, grupos radicais invadiram o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, em Brasília, em um ato que foi considerado por advogados e magistrados como tentativa de golpe de Estado . Cartazes e faixas pediam uma intervenção militar, o cancelamento das eleições gerais de 2022 e a prisão do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e do ministro do STF, Alexandre de Moraes.

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Após cenas de vandalismo e de violência - inclusive com animais -, os manifestantes foram detidos pela Polícia Federal. As pessoas que participaram dos atos antidemocráticos podem ser enquadrados nos Artigos 286 e 359-L, 359-M e 359-R do Código Penal. A reclusão mínima, excluindo a pena complementar de acordo com a violência empregada, é de 10 anos e três de prisão.

A respeito da comparação feita pelos detidos, que estariam em um ‘campo de concentração do Lula’ e vivendo no ‘Holocausto brasileiro’, Carlos Reiss ressalta que essa afirmação “é uma grande desonestidade histórica e ética”. Segundo ele, os nazistas impunham aos prisioneiros a perda do direito de ter direito. “O oposto disso não é uma liberdade plena, irrestrita e irresponsável, mas sim a manutenção do direito de ter direito”, explica.

De acordo com ele, na democracia brasileira, as pessoas que foram detidas por se manifestarem a favor de um golpe contra o Estado Democrático de Direito, além de terem vandalizados prédios públicos, terão seus direitos garantidos. “Eles têm direito a ampla defesa, a comunicação, alimentação, ou seja, tudo que uma democracia garante e que não era oferecido às vítimas do Holocausto”, destaca.

Charton Baggio Scheneider, professor da Congregação Israelita de Londrina (Brit Bracha Brasil), repudia a comparação feita entre os extremistas presos no domingo e o Holocausto, definindo com esdrúxula. “Vândalos não podem ser comparados com judeus em um campo de extermínio. Pessoas que depredam patrimônio público ou privado estão cometendo um crime. Qual o crime que cometeram os judeus? O de serem judeus, pertencerem a um povo. Não tem como comparar. O Holocausto foi uma indústria da morte”, afirma.

"Vândalos não podem ser comparados com judeus em um campo de extermínio", repudia Charton Baggio Scheneider professor da Congregação Israelita de Londrina
"Vândalos não podem ser comparados com judeus em um campo de extermínio", repudia Charton Baggio Scheneider professor da Congregação Israelita de Londrina | Foto: Arquivo pessoal

Desrespeito à memória

Carlos Reiss ressalta que as pessoas precisam ter um conhecimento básico sobre o que foi o Holocausto, os campos de concentração e do que é um Estado Democrático de Direito, com seus direitos e deveres. “Mais do que uma comparação equivocada, é algo desonesto, tanto do ponto de vista histórico quanto ético”, destaca.

“É um desrespeito à memória, às vítimas, aos sobreviventes, às famílias e aos descendentes, que vivem aqui no Brasil, assim como nós. São brasileiros desrespeitando brasileiros”, finaliza.