SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A atuação até aqui do ministro Celso de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), no comando do inquérito sobre a suposta interferência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na Polícia Federal é avaliada de maneira divergente por especialistas na corte, que veem o uso de termos desnecessários, condução firme da investigação, gestos de autodefesa e até a extrapolação do papel de juiz.

Desde o início da apuração no STF, no final de abril, a pedido da PGR (Procuradoria-Geral da República), houve uma sucessão de episódios que levantaram polêmicas quanto à atuação de Celso.

Um dos momentos de tensão ocorreu quando o ministro retirou, em 22 de maio, o sigilo do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro teria mostrado interesse em interferir na PF. O presidente sugeriu que, ao adotar a medida, Celso deveria ser enquadrado na lei de abuso de autoridade.

"Eu peço pelo amor de Deus: não prossiga [com] esse tipo de inquérito, a não ser que seja pela lei do abuso de autoridade. Está bem claro, quem divulga vídeos, imagens ou áudios do que não interessa ao inquérito... Tá lá [na lei], um a quatro anos de detenção", afirmou Bolsonaro, à época.

No início de maio, uma decisão sobre depoimentos a serem prestados levou militares a criticarem o magistrado.

No despacho, ele afirmou que as testemunhas do inquérito poderiam combinar com a PF uma data para depor.

Porém, caso faltassem a uma segunda convocação, estariam "sujeitas, como qualquer cidadão, não importando o grau hierárquico que ostentem no âmbito da República, à condução coercitiva ou 'debaixo de vara', como a ela se referia o art. 95 do Código do Processo Criminal do Império de 1832", segundo o texto.

Os militares que são testemunhas no inquérito disseram ver o uso da expressão "debaixo de vara" como uma afronta, e isso elevou a tensão institucional entre os Poderes.

Para Diego Werneck Arguelhes, professor do Insper, o emprego do termo foi desnecessário e não deveria ser usado em decisões judiciais, mas, segundo ele, o ministro não quis provocar os militares, e sim enfatizar que a lei penal é igual para todos.

"Embora a expressão não seja rara no universo judicial, ela de fato sobe o tom, e o ministro deveria saber disso", diz.

"Penso que a expressão não deveria constar em decisões judiciais em geral. Mas, no contexto, ela é uma afirmação de republicanismo radical. O recado implícito é: 'Vocês não têm privilégios na aplicação dessas regras'".

O professor do Insper, porém, avalia como positiva a atuação de Celso. "O estilo e a escolha de palavras são importantes, mandam mensagens, mas não devemos dar mais peso a isso do que as decisões em si, que, até aqui, me parecem adequadas", diz.

Já Thiago Bottino, professor de processo penal da FGV Direito Rio, diz não ver excesso na adoção do termo.

"Ele tem um linguajar mais rebuscado e ali não tem nenhum tipo de significado além daquilo que é o costume, de usar a expressão 'debaixo de vara', que significa 'à força."

De acordo com o professor, "as pessoas estão interpretando errado e não há nada de inadequado na conduta dele".

Outra situação que aumentou a temperatura institucional foi o fato de Celso ter enviado no fim de maio mensagem privada a ministros do STF na qual comparou a situação atual do país com a Alemanha sob Adolf Hitler.

"Guardadas as devidas proporções, o 'ovo da serpente', à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933) parece estar prestes a eclodir no Brasil", escreveu.

"É preciso resistir à destruição da ordem democrática, para evitar o que ocorreu na República de "‹Weimar quando Hitler, após eleito pelo voto popular [...], não hesitou em romper e em nulificar a progressista, democrática e inovadora Constituição de Weimar, impondo ao país um sistema totalitário de Poder."

Aliados do presidente criticaram a manifestação. O ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, escreveu: "Comparar o nosso amado Brasil à 'Alemanha de Hitler' nazista é algo, no mínimo, inoportuno e infeliz . A Democracia Brasileira não merece isso. Por favor, respeite o Presidente Bolsonaro e tenha mais amor à nossa Pátria!".

Indagado sobre esse episódio, o professor da USP e colunista da Folha de S.Paulo Conrado Hübner Mendes afirma que o momento institucional vivido pelo país justifica a atitude do magistrado.

"Em tempos de normalidade democrática, a discrição judicial é importante por diversas razões, e o STF tem falhado nisso dramaticamente nos últimos dez anos", diz.

Porém, "nestas circunstâncias de absoluta anormalidade e de agressão pelos outros Poderes, um juiz fazer uma analogia histórica sobre grupos que apoiam o presidente, acho politicamente justificável. É autodefesa".

A professora da Ufscar Fabiana Luci de Oliveira, socióloga que pesquisa o STF, diz que "o que estamos assistindo é grave" e que "a resposta [de Celso de Mello] é à altura do que estamos vivendo".

A pesquisadora ressalta que em alguns momentos o tribunal até foi criticado por supostamente não estar reagindo adequadamente em momentos de ataques às instituições. "Celso de Mello, que sempre foi mais contido, está sendo coerente com a forma como vem lendo a situação que a democracia brasileira vive hoje."

Já a advogada constitucionalista e mestre em direito público pela FGV Vera Chemim entende que as recentes condutas do ministro extrapolam o papel dele como magistrado.

Ela lembra que em novembro o ministro deixará o STF em razão da aposentaria compulsória aos 75 anos e diz que isso parece estar influenciando as posturas do ministro.

"Tenho a leitura de que ele está adotando esse tipo de posição no sentido de fazer com que seus atos nesse inquérito possam representar uma despedida proeminente do STF", afirma.

A constitucionalista destaca como negativa a decisão de Celso de divulgar o vídeo da reunião ministerial de abril. "Há ali um ranço de politização, mesmo que sutil, mas há", afirma.

Porém, a exemplo dos outros especialistas ouvidos, Vera entende que, do ponto de vista técnico, as condutas do magistrado não são suficientes para configurar parcialidade dele no comando do inquérito, que pudesse levar ao seu afastamento da apuração.