Brasília - O ex-presidente Jair Bolsonaro liderou a trama golpista no final de 2022, e a ruptura democrática não foi concretizada por "circunstância alheias à sua vontade", disse a Polícia Federal no relatório final da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado.

"Os elementos de prova obtidos ao longo da investigação demonstram de forma inequívoca que o então presidente da República, JAIR MESSIAS BOLSONARO, planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito, fato que não se consumou em razão de circunstâncias alheias à sua vontade", diz.

As informações estão no relatório final da investigação da PF sobre tentativa de golpe de Estado em 2022. As conclusões da investigações foram entregues na quinta-feira (21) ao STF (Supremo Tribunal Federal) e tornadas públicas pelo ministro Alexandre de Moraes nesta terça-feira (26).

O relatório foi enviado para análise da PGR (Procuradoria-Geral da República). O órgão é o responsável por avaliar as provas e decidir se denuncia ou não os investigados.

Segundo a corporação, os 37 envolvidos cometeram três crimes: tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e organização criminosa, cujas penas somam de 12 a 28 anos de prisão, desconsiderando os agravantes.

Bolsonaro negou na segunda-feira (25) que tivesse conhecimento sobre planos apurados pela PF para matar o presidente Lula (PT), o vice Geraldo Alckmin (PSB) e Alexandre de Moraes. "Esquece, jamais. Dentro das quatro linhas não tem pena de morte", afirmou.

O ex-presidente, porém, confirmou que discutiu com aliados e militares a possibilidade de decretar estado de sítio após a derrota na disputa eleitoral de 2022 --o que, para Bolsonaro, não configuraria golpe nem crime.

"Tem que estar envolvidas todas as Forças Armadas, senão não existe golpe. Ninguém vai dar golpe com general da reserva e mais meia dúzia de oficiais. É um absurdo o que estão falando", disse Bolsonaro.

"Da minha parte nunca houve discussão de golpe. Se alguém viesse pedir golpe para mim, ia falar, tá, tudo bem, e o 'after day'? E o dia seguinte, como é que fica? Como fica o mundo perante a nós. (...) A palavra golpe nunca esteve no meu dicionário."

MINUTA DO GOLPE

A investigação da Polícia Federal mostrou que, no fim de 2022, o então presidente Bolsonaro, aliados e militares passaram a discutir minutas de decreto golpistas com o objetivo de anular o resultado das eleições presidenciais, sob a falsa alegação de fraudes nas urnas eletrônicas.

Os textos passaram por mudanças ao longo de novembro e dezembro, algumas feitas por ordem de Bolsonaro. Com o texto alinhado entre aliados, o então presidente convocou os chefes das Forças Armadas para sondar o apoio dos militares à proposta golpista.

Em depoimento à Polícia Federal, o então comandante da Aeronáutica, brigadeiro Baptista Júnior, disse que o general Freire Gomes, à época comandante do Exército, chegou a dizer que prenderia Bolsonaro se ele avançasse com os intentos golpistas.

"Depois de o presidente da República, Jair Bolsonaro, aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, por meio de alguns institutos previsto na Constituição (GLO ou estado de defesa ou estado de sítio), o então comandante do Exército, general Freire Gomes, afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República", disse Baptista Júnior em depoimento.

O único chefe militar que apoiou os planos de Bolsonaro foi o comandante da Marinha, Almir Garnier Santos. Segundo a PF, ele colocou as tropas à disposição do ex-presidente para a consumação do golpe de Estado. O almirante ficou em silêncio diante da Polícia Federal.

Mesmo após a negativa dos chefes do Exército e da Aeronáutica, o então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, fez novos apelos para os comandantes das Forças Armadas. O militar foi a peça principal do governo Bolsonaro no ataque às urnas eletrônicas.

A Polícia Federal descobriu na reta final do inquérito que o general da reserva Mario Fernandes, que trabalhava no Palácio do Planalto, elaborou um plano para matar Lula, Alckmin e Moraes. Ele conseguiu apoio de outros militares, que executaram parte do planejamento.

O documento com o passo a passo do plano golpista foi impresso por Mario no Palácio do Planalto com o título "Punhal Verde Amarelo". Ele previa a participação de seis pessoas, com celulares descartáveis e formatados, e o uso de armamento exclusivo do Exército para o assassinato das autoridades.

O plano ainda previa outras possibilidades de execução dos alvos, como o uso de artefatos explosivos e envenenamento em evento público.

As investigações apontaram uma estrutura por meio de divisão de tarefas, com a existência dos seguintes grupos: Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral Núcleo Responsável por Incitar Militares a Aderirem ao Golpe de Estado Núcleo Jurídico Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas Núcleo de Inteligência Paralela Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas.

LADO GOLPISTA

O lado golpista de Bolsonaro é conhecido de longa data. Saudosista da ditadura militar (1964-1985), ele reiterou ao longo de anos sua tendência autoritária e seu desapreço pelo regime democrático. Negou a existência de ditadura no Brasil e se disse favorável a "um regime de exceção", afirmando que "através do voto você não vai mudar nada nesse país".

Na Presidência, deu a entender em 2021 que não poderia fazer tudo o que gostaria por causa dos pilares democráticos. "Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil."

Lula derrotou o então presidente Bolsonaro em 2022 após uma acirrada disputa de segundo turno. Durante seu mandato e após a derrota, o hoje inelegível Bolsonaro acumulou declarações golpistas. Bolsonaro questionou a legitimidade das urnas, ameaçou não entregar a Presidência a Lula após a derrota eleitoral, atacou instituições como o STF e o TSE e estimulou a população a participar de atos golpistas.

Diálogos e datas indicam que Bolsonaro sabia do plano de matar Lula, Alckmin e Moraes, diz PF

A Polícia Federal diz que uma série de diálogos entre interlocutores, análise da localização de celulares e datas e locais de reuniões indicam que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sabia do plano de matar o presidente Lula (PT), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).

O plano "Punhal Verde Amarelo" foi elaborado pelo general da reserva Mario Fernandes, segundo a PF. Minutos após o documento ser impresso pela primeira vez no Palácio do Planalto, em 9 de novembro de 2022, o militar foi até o Palácio da Alvorada para conversar com Bolsonaro.

Em 6 de dezembro daquele ano, Mario imprime novamente o documento na mesma hora em que o tenente-coronel Rafael de Oliveira estava no Palácio do Planalto. No dia seguinte, Oliveira começa a execução dos planos golpistas com a compra de um celular descartável, por meio do qual participou de grupo para a operacionalização da execução das autoridades, de acordo com a investigação.

Bolsonaro também se movimentou no dia seguinte, 7 de dezembro, segundo a PF. "Após ter realizado pessoalmente ajustes na minuta do decreto presidencial, Jair Bolsonaro convocou os comandantes das Forças Militares no Palácio da Alvorada para apresentar o documento e pressionar as Forças Armadas a aderirem ao plano de abolição do Estado democrático de Direito", diz.

O ex-presidente ouviu, na reunião, a negativa de apoio ao golpe dos comandantes do Exército e da Aeronáutica. O único que colocou tropas à disposição foi o chefe da Marinha, almirante Almir Garnier Santos.

Segundo a PF, no dia em que o golpe seria executado, com a prisão ou assassinato de Moraes, o general Mario Fernandes enviou uma mensagem para o ministro Luiz Eduardo Ramos. "Kid Preto, algumas fontes sinalizaram que o comandante da Força sinalizaria hoje, foi ao Alvorada para sinalizar ao presidente que ele podia dar uma ordem."

O general Freire Gomes realmente havia conversado com Bolsonaro na manhã do dia 15 de dezembro, no Palácio da Alvorada. Mario pede então a Ramos: "Blinda ele [Bolsonaro] contra qualquer desestímulo, qualquer assessoramento diferente. Isso é importante", disse em mensagem de áudio.

O próprio general Mario Fernandes foi ao Alvorada na tarde de 15 de dezembro. Ele chegou ao palácio às 16h24 e foi embora uma hora depois.

Na noite daquele dia, militares do Exército estavam a postos para executar o plano golpista contra Moraes. A Polícia Federal diz que, ao mesmo tempo, o "núcleo jurídico do grupo investigado finalizou o decreto que formalizaria a ruptura institucional, mediante a decretação de estado de defesa no Tribunal Superior Eleitoral".

Segundo a PF, o plano de execução das autoridades foi abortado já com os militares em campo porque o golpe só seria viável com a participação de "um elemento fundamental, o apoio do braço armado do Estado, em especial a força terrestre, o Exército".

"No entanto, os comandantes Freire Gomes do Exército e Baptista Junior da Aeronáutica se posicionaram contrários a qualquer medida que causasse a abolição do Estado democrático de Direito. Assim, a operação Copa 2022, na data de 15 de dezembro de 2022, enquanto já estava em andamento, teve que ser abortada", diz a Polícia Federal.

No dia seguinte ao golpe frustrado, o coronel Gustavo Gomes enviou uma mensagem encaminhada para o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere em que mostrava desânimo com a posição do Exército.

"Infelizmente a FAB afrouxou e o EB agora também está afrouxando... somente a MB quer guerra... o PR realmente foi abandonado... É foda... só interesses pessoais... já começaram as promessas de um futuro promissor para todos os envolvidos nas decisões...", diz a mensagem encaminhada por Gomes.

A PF conclui no relatório que a coincidência das datas e as mensagens trocadas por militares indicam que Bolsonaro tinha conhecimento de todos os atos relacionados ao plano de assassinato das autoridades.

"Os dados descritos corroboram todo o arcabouço probatório, demonstrando que o então presidente da República Jair Bolsonaro efetivamente planejou, dirigiu e executou, de forma coordenada com os demais integrantes do grupo desde [pelo menos] o ano de 2019, atos concretos que objetivavam a abolição do Estado democrático de Direito, com a sua permanência no cargo de presidente da República Federativa do Brasil, fato que não se consumou por circunstâncias alheias a sua vontade."