Amigos com opções eleitorais opostas dão exemplo de boa convivência
Para professor, encontrar pessoas com divergências de ideias, mas se respeitam, é uma simbologia significativa do que é a democracia
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
Para professor, encontrar pessoas com divergências de ideias, mas se respeitam, é uma simbologia significativa do que é a democracia
Lucas Marcondes Araújo - Especial para a FOLHA
Uma morte a tiros em Foz do Iguaçu (Oeste) e outra a facadas no interior de Mato Grosso. Em uma igreja de Goiânia, um fiel baleado. Em Londrina, socos e empurrões na porta do Estádio do Café. São casos recentes de violência registrados em diferentes regiões do Brasil, mas com uma característica em comum: ocorreram por conta de divergências políticas envolvendo as eleições gerais de 2022.
Ainda assim, há quem consiga travar debates sobre o tema que domina as manchetes sem “entrar em vias de fato”. Pelo contrário, abordam o assunto do momento com tranquilidade e bom humor.
É o caso dos amigos Ademir Ferreira, corretor de imóveis de 60 anos, e Clóvis Frazão, agricultor de 36 anos. Moradores de Tamarana, na Região Metropolitana de Londrina, eles costumam se reunir com outros amigos em uma conveniência da cidade. E os acontecimentos do pleito de 2022 são presença constante no cardápio desse happy hour.
“Por uma pessoa ter uma divergência política, você não pode trazer isso para o lado pessoal. A maioria dos meus amigos [de Tamarana] é de direita, mas toda vida me respeitaram. A gente brinca, tira sarro, mas ninguém extrapola”, conta Ferreira, eleitor de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“90% das pessoas não sabem ter esse diálogo que eu tenho com o Ademir”, comenta Frazão. “E, depois, acabou o diálogo, a amizade é a mesma”, complementa o apoiador de Jair Bolsonaro (PL).
“Encontrar duas pessoas que tenham divergências de ideias, mas se respeitam, é uma simbologia muito significativa do que é a democracia, que é divergir em relação a ideias, não a pessoas”, analisa o professor de ética e filosofia política da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Clodomiro Bannwart
SEM OFENSA
O acadêmico vai além e define o caso trazido pela FOLHA como “acima da média”. “Encontrar pessoas capazes de vivenciar a democracia é encontrar pessoas com uma capacidade de desenvolvimento cognitivo, interacional e ético acima da média”, declara Bannwart – que, inclusive, lançará em 27 de setembro o livro “Política sem ofensa, por gentileza!”. A obra reúne uma série de textos do estudioso que apontam caminhos para afastar o ódio e trazer o respeito para a arena do debate político.
Ao mesmo tempo, de volta a Tamarana, os acontecimentos negativos motivados pela campanha eleitoral preocupam a dupla de amigos. “Estamos vivendo no Brasil coisas que nunca aconteceram na política. Houve uma divisão muito grande no país, isso não é bom para ninguém”, afirma Ferreira, que já foi vereador no município, de 1997 a 2000. “A partir do momento que perdeu o respeito, você também perde a razão”, acrescenta Frazão.
Para Bannwart, o atual cenário tem relação íntima com o crescente protagonismo das redes sociais nas relações humanas. “As pessoas estão ocupadas em compreender essa realidade através de um meme ou uma frase solta disparada pelo WhatsApp, mas a realidade social não é isso. Ela é complexa, mas as pessoas acham que é binária.”
A ausência histórica de práticas de educação voltadas para a cidadania, acrescenta o professor, tem cobrado seu preço no cotidiano nacional “Nossa cidadania sempre foi muito deficitária. Nós não fomos educados para exercer uma cidadania plena”.
Em um ponto, porém, os amigos Ferreira e Frazão são unânimes: não importa qual seja o vencedor da eleição, já é certa a cervejinha para comentar o que pode ser do Brasil a partir de 2023. “Tenho lado político, mas o próprio político de estimação não tenho”, argumenta o eleitor de Bolsonaro. “A política faz parte da vida da gente desde que o mundo é mundo”, diz o apoiador de Lula.
CAMINHOS PARA CONTER ESCALADA DO ÓDIO
Em meados da década de 1950, em um contexto histórico marcado pelos reflexos do Holocausto e a luta por igualdade civil nos Estados Unidos, o psicólogo estadunidense Gordon Allport formulou sua Escala de Preconceito e Discriminação.
Dividida em cinco níveis, a Escala de Allport mede a intensidade do preconceito e da discriminação contra determinado grupo humano. A trajetória de ódio começa no nível 1, o da Antilocução, que ocorre por meio de atitudes, piadas ridicularizantes e chega até ao nível 5, o do Extermínio, que busca a extinção do grupo alvo dos ataques.
Em seu blog “Ensaios e Notas”, o antropólogo e cientista da religião Leonardo Alves, escreve rotineiramente sobre questões como essa. Em entrevista à FOLHA, o pesquisador brasileiro faz um alerta quanto ao nível da Escala de Allport em que, na avaliação dele, o Brasil tem se situado.
“Infelizmente, eu acho que esteja entrando na escala 4, que é o da violência no sentido de morte. Eu tento não ser alarmista, mas eu acho que está chegando a níveis de causar medo mesmo”, indica o acadêmico.
Alves, por outro lado, lembra que a própria métrica serve para resolver conflitos. “A Escala de Allport já foi utilizada em processos de reconciliação, tanto no apartheid [na África do Sul] quanto na Irlanda do Norte [nos conflitos entre católicos e protestantes].”
Atualmente estudando na Noruega, o cientista da religião identifica em exemplos nórdicos inspirações necessárias para os brasileiros começarem a desatar o nó da violência política que tem rompido relações e gerado tragédias em solo tupiniquim.
“Estima-se que, na Noruega e na Suécia, 90% da população participem de algum clube, essas pessoas estão acostumadas com uma gestão democrática de suas associações. Surgir o máximo possível de associações voluntárias seria uma solução para o Brasil. Porque as pessoas passam a gerir seus próprios interesses, são ‘obrigadas’ a se socializar. É possível que haja uma reconstrução política e democrática nesses termos”, vislumbra.
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