Uma morte a tiros em Foz do Iguaçu (Oeste) e outra a facadas no interior de Mato Grosso. Em uma igreja de Goiânia, um fiel baleado. Em Londrina, socos e empurrões na porta do Estádio do Café. São casos recentes de violência registrados em diferentes regiões do Brasil, mas com uma característica em comum: ocorreram por conta de divergências políticas envolvendo as eleições gerais de 2022.

Ainda assim, há quem consiga travar debates sobre o tema que domina as manchetes sem “entrar em vias de fato”. Pelo contrário, abordam o assunto do momento com tranquilidade e bom humor.

É o caso dos amigos Ademir Ferreira, corretor de imóveis de 60 anos, e Clóvis Frazão, agricultor de 36 anos. Moradores de Tamarana, na Região Metropolitana de Londrina, eles costumam se reunir com outros amigos em uma conveniência da cidade. E os acontecimentos do pleito de 2022 são presença constante no cardápio desse happy hour.

“Por uma pessoa ter uma divergência política, você não pode trazer isso para o lado pessoal. A maioria dos meus amigos [de Tamarana] é de direita, mas toda vida me respeitaram. A gente brinca, tira sarro, mas ninguém extrapola”, conta Ferreira, eleitor de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“90% das pessoas não sabem ter esse diálogo que eu tenho com o Ademir”, comenta Frazão. “E, depois, acabou o diálogo, a amizade é a mesma”, complementa o apoiador de Jair Bolsonaro (PL).

“Encontrar duas pessoas que tenham divergências de ideias, mas se respeitam, é uma simbologia muito significativa do que é a democracia, que é divergir em relação a ideias, não a pessoas”, analisa o professor de ética e filosofia política da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Clodomiro Bannwart

SEM OFENSA

O acadêmico vai além e define o caso trazido pela FOLHA como “acima da média”. “Encontrar pessoas capazes de vivenciar a democracia é encontrar pessoas com uma capacidade de desenvolvimento cognitivo, interacional e ético acima da média”, declara Bannwart – que, inclusive, lançará em 27 de setembro o livro “Política sem ofensa, por gentileza!”. A obra reúne uma série de textos do estudioso que apontam caminhos para afastar o ódio e trazer o respeito para a arena do debate político.

Ao mesmo tempo, de volta a Tamarana, os acontecimentos negativos motivados pela campanha eleitoral preocupam a dupla de amigos. “Estamos vivendo no Brasil coisas que nunca aconteceram na política. Houve uma divisão muito grande no país, isso não é bom para ninguém”, afirma Ferreira, que já foi vereador no município, de 1997 a 2000. “A partir do momento que perdeu o respeito, você também perde a razão”, acrescenta Frazão.

Professor de ética e filosofia política na UEL, Bannwart lançará livro que debate alternativas ao cenário de violência no debate político
Professor de ética e filosofia política na UEL, Bannwart lançará livro que debate alternativas ao cenário de violência no debate político | Foto: Divulgação

Para Bannwart, o atual cenário tem relação íntima com o crescente protagonismo das redes sociais nas relações humanas. “As pessoas estão ocupadas em compreender essa realidade através de um meme ou uma frase solta disparada pelo WhatsApp, mas a realidade social não é isso. Ela é complexa, mas as pessoas acham que é binária.”

A ausência histórica de práticas de educação voltadas para a cidadania, acrescenta o professor, tem cobrado seu preço no cotidiano nacional “Nossa cidadania sempre foi muito deficitária. Nós não fomos educados para exercer uma cidadania plena”.

Em um ponto, porém, os amigos Ferreira e Frazão são unânimes: não importa qual seja o vencedor da eleição, já é certa a cervejinha para comentar o que pode ser do Brasil a partir de 2023. “Tenho lado político, mas o próprio político de estimação não tenho”, argumenta o eleitor de Bolsonaro. “A política faz parte da vida da gente desde que o mundo é mundo”, diz o apoiador de Lula.

CAMINHOS PARA CONTER ESCALADA DO ÓDIO

Em meados da década de 1950, em um contexto histórico marcado pelos reflexos do Holocausto e a luta por igualdade civil nos Estados Unidos, o psicólogo estadunidense Gordon Allport formulou sua Escala de Preconceito e Discriminação.

Dividida em cinco níveis, a Escala de Allport mede a intensidade do preconceito e da discriminação contra determinado grupo humano. A trajetória de ódio começa no nível 1, o da Antilocução, que ocorre por meio de atitudes, piadas ridicularizantes e chega até ao nível 5, o do Extermínio, que busca a extinção do grupo alvo dos ataques.

“A Escala de Allport já foi utilizada em processos de reconciliação”, aponta Leonardo Alves
“A Escala de Allport já foi utilizada em processos de reconciliação”, aponta Leonardo Alves | Foto: Acervo pessoal

Em seu blog “Ensaios e Notas”, o antropólogo e cientista da religião Leonardo Alves, escreve rotineiramente sobre questões como essa. Em entrevista à FOLHA, o pesquisador brasileiro faz um alerta quanto ao nível da Escala de Allport em que, na avaliação dele, o Brasil tem se situado.

“Infelizmente, eu acho que esteja entrando na escala 4, que é o da violência no sentido de morte. Eu tento não ser alarmista, mas eu acho que está chegando a níveis de causar medo mesmo”, indica o acadêmico.

Alves, por outro lado, lembra que a própria métrica serve para resolver conflitos. “A Escala de Allport já foi utilizada em processos de reconciliação, tanto no apartheid [na África do Sul] quanto na Irlanda do Norte [nos conflitos entre católicos e protestantes].”

Atualmente estudando na Noruega, o cientista da religião identifica em exemplos nórdicos inspirações necessárias para os brasileiros começarem a desatar o nó da violência política que tem rompido relações e gerado tragédias em solo tupiniquim.

“Estima-se que, na Noruega e na Suécia, 90% da população participem de algum clube, essas pessoas estão acostumadas com uma gestão democrática de suas associações. Surgir o máximo possível de associações voluntárias seria uma solução para o Brasil. Porque as pessoas passam a gerir seus próprios interesses, são ‘obrigadas’ a se socializar. É possível que haja uma reconstrução política e democrática nesses termos”, vislumbra.

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