Relatórios de inteligência financeira, documentos apreendidos e informações sobre transações bancárias no Brasil e no exterior – uma sem-fim quantidade de informações sobre irregularidades apuradas ao longo de mais de seis anos pela operação Lava Jato - são alvo de disputa. Atingida desde os vazamentos de bastidores entre seus integrantes, a força-tarefa formada por procuradores do MPF (Ministério Público Federal), com seu coração em Curitiba, sofreu mais um baque com a decisão do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), o ministro Dias Toffoli, de que toda a base de dados produzida pelo grupo deve ser entregue à PGR (Procuradoria-Geral da República), conforme proferido no último dia 9. A decisão ainda pode ser alterada pelo plenário do STF, como ocorreu no semelhante caso do antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Imagem ilustrativa da imagem Acesso a dados da Lava Jato pela PGR provoca discordâncias e reflexões
| Foto: Antônio Augusto/PGR

A primeira atitude do time paranaense foi de obediência, com a garantia do cumprimento da ordem, mas reagiu à origem do pedido formalizado pela equipe do procurador-geral da República, Augusto Aras. Segundo os procuradores, a decisão parte de pressuposto falso, pois inexiste qualquer investigação sobre agentes públicos com foro privilegiado. Eles ainda afirmaram que estão sujeitos às ações da corregedoria e que essa não é uma das atribuições do PGR. “Por fim, lamenta-se que a decisão inaugure orientação jurisprudencial nova e inédita, permitindo o acesso indiscriminado a dados privados de cidadãos”, afirmou a nota do MPF. A FOLHA procurou a Lava Jato, que não respondeu a questionamentos feitos sobre a decisão.

A medida do presidente do Supremo ainda repercutiu no grupo da Lava Jato fora do Paraná. O ex-coordenador do Rio de Janeiro que conseguiu provas capazes de prender dois ex-governadores do estado, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, comentou a decisão. O procurador regional da República Leonardo Cardoso de Freitas, que atualmente atua na segunda instância da Justiça Federal em São Paulo, defendeu em entrevista ao jornal “Folha de São Paulo” a independência funcional, repartições e atribuições do MPF. Para ele, nem todas as informações colhidas em uma investigação podem ser compartilhadas livremente, nem mesmo com o procurador-geral da República.

MARCO

Por mais que criticada quanto alguns dos métodos adotados ao longo das investigações, a Lava Jato tem marcas incomparáveis na História do País. Desde sua criação, registrou a devolução de mais de R$ 4 bilhões aos cofres públicos. Além de realizar 70 fases que resultaram em 500 pessoas acusadas, 52 sentenças e mais de 210 condenações em primeira instância. A turbulência provocada pelas apurações dos desvios, inicialmente apontados na Petrobras, atingiu não só os políticos como grandes empresas e empreiteiras até então intocadas. Isso só foi possível pela adoção de instrumentos novos na nossa Justiça como, por exemplo, as chamadas delações premiadas. “A operação foi um grande fenômeno e hoje volta ao papel do que deveria ser sempre, sem o grande efeito midiático. Ela teve dois papéis fundamentais, um foi o de implodir o sistema político, o outro foi o de criar um ambiente, que acabou tendo como consequência a chegada de Jair Bolsonaro à presidência”, explica Elve Censi, professor de Ética e Filosofia Política do Departamento de Filosofia da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Há questões institucionais, no entanto, que precisam ser levadas em consideração. A primeira delas é que o MPF não é um órgão hierárquico. Por isso, os procuradores da República que o integram não estão sujeitos às ordens do procurador-geral da República. É exatamente a independência que garante um sistema de contrapesos internamente. Outro ponto que deve ser avaliado é que não foi explicado como a PGR se utiliza das informações do banco de dados, especialmente porque essas informações devem ser protegidas por uma série de controles e regras. “O procurador-geral precisa explicar o interesse súbito por Curitiba. Ele tem uma relação que já mostrou ser muito próxima com Bolsonaro. Essa pode ser a explicação que tem como bastidor um embate político com o Sergio Moro, um óbvio candidato que poderia dividir votos com o presidente em 2022”, aponta Censi.

EXAGEROS

Professor de Direito Penal e Criminologia da PUC/PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e conhecido criminalista, o advogado londrinense Walter Bittar afirma que a preocupação da interferência política partidária deve ser minimizada, visto que o risco de ela se tornar protagonista nos poderes constituídos sempre existiu. No entanto, acredita que o Brasil tem uma democracia madura o suficiente para não se deixar contaminar. “Não vejo nada de ilegal na decisão do ministro Toffoli, que é a autoridade máxima do Judiciário. Existe um direito de investigação do próprio órgão, estes dados não pertencem à Lava Jato e sim à instituição. A força-tarefa não é um organismo à parte”, afirma Bittar. Ele ainda diz que a decisão serve como um freio de arrumação para conter os excessos cometidos pelos procuradores. “A Lava Jato é, sim, um marco da Justiça pelo volume de processo e do numerário envolvido, mostrou as entranhas das negociatas do governo com empresas. Também foi um marco dos exageros e agora parece que as coisas estão indo para um ponto de equilíbrio”, opina.

Uma das principais críticas do advogado aponta a forma em que as delações foram utilizadas nos processos. Bittar acredita que os instrumentos sofreram um mau uso, mas essa própria forma permitiu que acontecessem avanços. “A operação também representa um ponto importante porque permitiu resgatar alguns garantistas que estavam pressionados. Não é possível deixarmos de defender valores tão complexos”, diz o criminalista, que aposta na continuidade da Lava Jato. Mesmo que a repercussão sobre os trabalhos diminua, a extensão da apuração dos fatos é imensurável. “A Lava Jato se tornou muito grande, houve uma distribuição dos inquéritos por muitas instâncias e de várias frentes. Seus efeitos vão durar por muitos anos. Pode acontecer que alguns processos sejam anulados, mas isso não a reduzirá de importância”, conclui Bittar.