Um ano depois dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos três poderes foram depredadas em Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda tem 1.324 ações penais abertas contra suspeitos de participarem do vandalismo na capital federal. Destas, 1.113 foram suspensas para que a Procuradoria-Geral da República (PGR) avalie a possibilidade de negociar um Acordo de Não Persecução Penal. Isso significa que ao menos 211 pessoas serão julgadas pelo Tribunal após o recesso do Judiciário. Desde setembro, 30 pessoas foram condenadas.

A ação de 8 de janeiro foi o ápice de um movimento que começou logo após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno das eleições presidenciais, em 30 de outubro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) passaram a montar acampamentos na frente de quartéis do Exército para pedir uma “intervenção militar” no país.

Após uma convocação nacional, manifestantes de todo o país foram até Brasília para participar da “tomada de poder”, como eles mesmos anunciaram nas redes sociais. As sedes dos STF, do Palácio do Planalto (sede do Executivo) e do Congresso (Câmara dos Deputados e Senado) foram vandalizadas e ocupadas.

Só no dia 8, 243 pessoas foram presas dentro das sedes dos três Poderes e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, foi afastado do cargo por determinação do ministro do STF Alexandre de Moraes. No dia seguinte, mais 1.927 pessoas foram detidas, mas 775 foram liberadas por seres idosos ou responsáveis por crianças. Após as audiências de custódia, 938 permaneceram presas.

Atualmente, 66 pessoas seguem presas, segundo balanço do STF. Destas, oito foram condenadas, 33 foram denunciadas e outras 25 pessoas são investigadas por financiar ou incitar os crimes.

Após uma intensa pressão da oposição, o governo liberou sua bancada na Câmara e no Senado para aprovarem a criação de uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) para investigar os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Durante a comissão, a oposição mostrou sua estratégia para tentar afastar a tese de tentativa de um golpe de estado: o próprio governo teria facilitado as invasões e as depredações teriam sido obra de “infiltrados”, o que não foi comprovado pelas investigações.

CMPI E CONDENADOS

O relatório final da CPMI, feito pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA), foi aprovado em outubro e pediu o indiciamento de 61 pessoas, entre elas Bolsonaro, os ex-ministros da Defesa, Walter Braga Neto, e da Justiça, Anderson Torres, e Augusto Heleno, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Torres ficou preso por quatro meses. O diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) durante o governo Bolsonaro, Silvinei Vasques, foi preso em agosto, suspeito de coordenar uma operação para impedir eleitores de votarem no Nordeste, região onde Lula havia vencido no primeiro turno.

Dois dos condenados pelo STF, George Washington de Oliveira Sousa e Alan Diego dos Santos Rodrigues, pretendiam explodir um posto de gasolina em Brasília, segundo a acusação, para promover o caos na capital federal e forçar uma intervenção do Exército. Outro condenado foi o blogueiro Wellington Macedo de Souza, sentenciado a seis anos de prisão por planejar colocar uma bomba no aeroporto de Brasília. Ele foi assessor da ministra Damares Alves durante o governo Bolsonaro.

Imagem ilustrativa da imagem 8 de janeiro: STF ainda tem 1.324 ações contra suspeitos
| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

LONDRINENSES

Na semana passada, a PGR apresentou denúncia contra o primeiro suspeito de ajudar a financiar os atos de 8 de janeiro, o empresário de Londrina Pedro Luis Kurunczi. Segundo a denúncia, ele fretou quatro ônibus, no valor de R$ 59,2 mil, para levar 108 pessoas a Brasília. A PGR sustenta que ele participou da organização dos atos e ajudou a arregimentar pessoas para participar das manifestações em Brasília por meio de grupos de mensagens, entre outubro de 2022 e janeiro deste ano.

Kurunczi é suspeito dos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. As penas, somadas, podem ultrapassar os 30 anos de prisão.

A Folha entrou em contato com a advogada do empresário, Ana Paula Delgado Barroso, mas ela preferiu não se manifestar, pois seu cliente ainda não foi oficialmente citado.

Outro suspeito de Londrina é o médico veterinário João Paulo Silva Matos, que teria sido identificado por meio de uma filmagem dentro do Palácio do Planalto. Matos foi preso no dia 18 de abril, em uma das fases da Operação Lesa Pátria, e deixou a prisão em dezembro, após determinação de Alexandre de Moraes.

Segundo o advogado Rodrigo Antunes, que defende Matos, seu cliente se submeteu a medidas cautelares e já está retomando a rotina. Antunes disse que Matos ficou preso por mais de 200 dias, mesmo sem a existência de denúncia por parte da PGR, e que foram necessários quatro pedidos de revogação de prisão, por excesso de prazo, antes que Alexandre de Morais atendesse a solicitação. O defensor ressaltou ainda que, por lei, o prazo para oferecimento de denúncia quando o réu está preso é de cinco dias.

Empresário do ramo da construção civil, Claudio Mazzia foi outro morador de Londrina preso na operação Lesa Pátria. Ele ficou preso de 27 de janeiro a 24 de outubro, suspeito de ajudar a organizar uma caravana para Brasília. Na época em que o empresário foi solto, seu advogado, José Carlos Mancini, disse que a acusação era frágil e que seu cliente não estava em Brasília no dia 8 de janeiro. A reportagem da Folha tentou contato com Mancini na semana passada, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.

EXTREMISTAS APOSTAM NO REVISIONISMO HISTÓRICO

Pesquisador de extrema direita e doutor em Ciências Sociais, o professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Jefferson Rodrigues Barbosa avalia que a direita brasileira, por meio de parlamentares e meios de comunicação, tenta aplicar técnicas do revisionismo histórico para descaracterizar os atos de 8 de janeiro de 2023 como uma tentativa de golpe de estado. O revisionismo é uma tentativa de buscar novas interpretações dos fatos históricos, como negar o Holocausto dos judeus na Segunda Guerra Mundial ou a existência de uma ditadura no Brasil entre 1964 e 1985.

“Não podemos pensar o 8 de janeiro como um fato motivado pela insatisfação de parte dos eleitores. O que temos é algo muito proximo a invasão do Capitólio de 6 de janeiro de 2021, pelas características da organização e dos temas da pauta de grupos de extrema direita”, diz Barbosa em relação à invasão da sede do Poder Legislativo norte-americano após a derrota do então presidente Donald Trump para Joe Biden na eleição de 2020.

Segundo o cientista político, há fortes indícios de articulação entre a extrema direita brasileira e a de outros países. “Em 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) criou o Instituto Liberal Conservador, há grupos semelhantes desde as últimas décadas do século 20. O próprio Jair Bolsonaro discursou com Donald Trump, em abril de 2023, em uma versão desse evento, o que mostra uma articulação internacional desses grupos”.

FORTES RAÍZES DESDE DÉCADA DE 1920

Apesar da conexão, a extrema direita brasileira tem fortes raízes desde a década de 1920, diz o pesquisador. “Não é um fato novo, um mero modismo ou a reprodução de modelos estrangeiros. No Brasil, desde os anos de 1920 há referenciais históricos e documentais que comprovam a organização de grupos tributários ao fascismo ou ligados ao Partido Nacional Socialista (nazista) alemão nos anos 30. Essa extrema direita se metamorfoseia”, diz. “Alguns chamam de extrema direita, outros de populimo de direita, mas um fato é claro: são violentos, antidemocráticos e trazem a ideia de describilidade das instituições e dos fundamentos jurídicos, o que traz força de mobilização social”.

Para o cientista político, as pautas de Bolsonaro quando ele se elegeu deputado federal pela primeira vez, em 1990, já eram revisionistas. “Essa visão fica clara quando o ex-presidente discursa elogiando o (torturador) Carlos Brilhante Ustra. Ali ele coloca claramente sua identidade como um apologeta da ditadura. Ele nunca fez questão de negar essa identidade”.

ELEMENTO DE SEGURANÇA PÚBLICA

Jefferson Barbosa avalia que não há como desvincular os manifestantes de 8 de janeiro de teses golpistas. “O 8 de janeiro tinha como lema a intervenção militar constitucional, uma leitura equivocada do artigo 142 da Constituição. Essa interpretação de que as Forças Armadas podem intervir também é uma perspectiva revisionista. A defesa de uma nova intervenção militar e a ocupação de prédios públicos mostram que o tema da extrema direita no Brasil não é só fator de curiosidade histórica, mas um elemento de segurança pública”.

Esse mesmo processo de revisionismo teria sido aplicado após o 8 de janeiro, quando os bolsonaristas criaram a tese dos “infiltrados”. “Para a máquina de propaganda bolsonarista, como canais do youtube e jornais que lucraram com verbas do governo federal, a única possibilidade agora é transformar a imagem trágica do 8 de janeiro em capital político. Para essa máquina, é necessário aplicar as ferramentas do revisionismo histórico, colocar os golpistas sob a falsa imagem de patriotas e criar o capital político para continuar a alimentar mobiliação dos mais fanáticos”, afirma Barbosa. “O discurso da extrema direita não pode ser estudado se quisermos buscar coerência e argumentos lógicos. É um discurso que visa mobilização e usa instrumentos psicossociais de estímulo ao apoiadores”.

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. | Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil

PARA DEPUTADO, NÃO HOUVE TENTATIVA DE GOLPE

Deputado federal pelo PL e apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro, Filipe Barros acusa o governo de Luiz Inácio Lula da Silva de ser o responsável pela depredação de 8 de janeiro de 2023. Para ele, black blocs (manifestantes anarquistas que teriam promovido atos de vandalismo nos protestos nacionais de 2013) iniciaram as depredações. Barros defende que os manifestantes indiciados respondam por por depredação do patrimônio público, e não por tentativa de golpe de estado.

“Fui membro da CPMI dos atos do dia 8 de janeiro e posso afirmar categoricamente que o 8 de janeiro só aconteceu porque, como o próprio presidente Lula disse, alguém abriu as portas. Houve uma omissão dolosa por parte de membros do governo, em especial por parte do Flávio Dino (ministro da Justiça) para favorecer atos de vandalismo. A Força Nacional foi convocada para agir no dia 6 de janeiro e não agiu no dia 8, e as imagens do Ministério da Justiça simplesmente sumiram”.

Para Barros, a linha de investigação deveria levar em conta quem se beneficiou com os atos. “Uma das linhas de investigação deve ser quem se beneficiou com o crime. Quem se beneficiou politicamente com o 8 de janeiro foi o próprio governo, que a partir daí conseguiu mobilizar o STF e tem governado com o Supremo, em detrimento do Legislativo”.

Segundo o deputado, não foi possível identificar quem iniciou os atos de vandalismo. “As imagens públicas da Esplanada dos Ministérios mostram que existia de fato uma turba que estava à frente dos manifestantes, que em primeiro lugar tirou os gradis e facilitou a entrada dos manifestantes nos prédio públicos. Se houvesse a Força Nacional, isso não teria acontecido”, afirma Barros. “Não conseguirmos identificar quem são essas pessoas. Não seria de interesse do próprio governo identificar essas pessoas. Minha opinião é que foram os black blocs, infelizmente o governo não impediu”.

Filipe Barros descarta a tentativa de golpe. “Minha tese é que não havia qualquer meio de ação para que os manifestantes concretizassem o golpe. Essas pessoas serem punidas com 17 anos de prisão é um exagero completo, que sejam punidas por depredação de patrimônio público. Há uma série de problemas jurídicos, não há a devida identificação das pessoas que estavam na frente do QG do Exército, até pessoas que sequer foram até a Esplanada estão sendo processadas”.

Na avaliação do deputado, a ideia dos manifestantes era apenas demonstrar sua insatisfação diante do resultado eleitoral e da posse de Lula. “A população de direita sempre fez manifestações pacificamente, desde 2013. Com certeza essa pequena turba insuflou esse povo e preparou o terreno para que entrassem e depredassem”.

DEMOCRACIA CORREU RISCO, AFIRMA VEREADORA

Vereadora em Londrina, Lenir de Assis (PT) diz que será necessário lembrar o 8 de janeiro de 2023 pelas próximas décadas. “Esta é uma data que não poderemos esquecer. Teremos que revisitá-la constantemente. Talvez o senso comum não tenha se dado conta da gravidade do que vivemos em 8 de janeiro de 2023. O que alguns ainda insistem em chamar de manifestação foi um ato gravíssimo de ataque ao Estado Democrático de Direito, um dos dois crimes considerados em nossa Constituição Federal como imprescritível”.

Para a parlamentar, a democracia brasileira correu um sério risco em janeiro de 2023 e o golpe só foi frustrado por causa das ações do governo federal e do Supremo Tribunal Federal (STF). “Estivemos muito próximos de perder nossa democracia. A resposta imediata e assertiva do governo federal e do STF, evitou o pior. Todas as medidas penais foram e estão sendo tomadas e isso é crucial para se dar a dimensão de tentativa de golpe de Estado. Novas ações penais contra os réus já estão sendo analisadas agora, no início de 2024, pelo STF”.

Lenir de Assis considera essencial realizar atos, como o convocado pelo governo federal, para relembrar a data. “Precisamos que todos envolvidos continuem sendo devidamente penalizados, além disso temos que marcar publicamente esta data. É nosso dever não deixá-la no esquecimento”, diz a vereadora. “Os movimentos sociais, sindicais, estão se organizando em manifestações. Temos que manter vivo o 8 de janeiro, como um alerta sobre o risco que corremos e de como precisamos estar vigilantes na defesa da democracia”.