Estou lendo atualmente um livro que tanto tem me tocado pelo seu aspecto científico como pelo literário. Não há oposição entre Ciência e Arte. Elas (todas as Ciências e todas as Artes) ocupam lugares distintos da mente humana e, ao lado da Filosofia e da Fé, vivem em plena harmonia e, algumas vezes, em proveitoso diálogo. Cada uma respeitando o domínio da outra, não há como esperar que surjam desentendimentos entre elas. Seria ridículo e cômico, por exemplo, que um pintor falasse mal da escultura, que um cineasta depreciasse o teatro, que um religioso se mostrasse contrário aos progressos da Ciência ou que um cineasta, como tal, quisesse desvalorizar o jazz ou a obra genial e inigualável de um Bach, de um Mozart ou de um Haydn. Cada qual pode falar mal do que quiser, mas que se procurem razões dentro da categoria esplendorosa das diversas áreas acima referidas.
Um grande cientista pode não ter qualidades superiores como artista em qualquer um dos seus domínios. Poderá escrever sem o brilho de um Eça de Queiroz, de um José Saramago, de um Guimarães Rosa ou de um Machado de Assis, para citar apenas alguns luminares da língua portuguesa. Mas é preciso que tenha aprendido a escrever corretamente, além é claro, de saber algo de inglês que o capacite a conversar, a ler e a escrever nessa língua. No mínimo isso: a sua língua e a língua inglesa. Antigamente, era preciso saber, além da sua, também o latim, ou o alemão, ou o francês. Mas atualmente o inglês é a língua internacional da Ciência.
Voltemos ao livro que tem me impressionado tanto pela beleza de sua Ciência e pela forma magnífica com que essa Ciência é transmitida. O livro chama-se ‘‘One renegade cell’’ e traz um sub-título pequenino - ‘‘How cancer begins’’. Seu autor: Robert A. Weinberg, diretor do Laboratório de Pesquisas Oncológicas do Instituto Whiteheal e professor do Instituto Massachussets de Tecnologia, de Cambridge (EUA).
Trata-se de um livro marcado por uma alta Ciência e também notavelmente bem escrito. Isso não é raro nos arraiais científicos; pelo contrário, são relativamente comuns os grandes cientistas que escrevem bem. Para não fugir da minha área científica e, pelo contrário, fazendo nela convergir a minha atenção e o meu julgamento, poderia citar vários autores, começando em Darwin e Mendel. Mas, para não ir muito longe, quero lembrar o genial Th. Dobzhansky, nascido na União Soviética, só foi para os Estados Unidos aos 27 anos de idade e escrevia um inglês perfeito, minucioso e agradável de ser lido. Era um mestre! Mas há outros também muito bons: Ernst Mayr, Sewall Wright, R.A. Fischer, J.B.S. Haldane e tantos outros. É um prazer ler a obra científica desses geniais americanos e ingleses. Infelizmente, meus conhecimentos paupérrimos de muitas das outras línguas impede que eu opine sobre o que nelas foi escrito. Mas quero ressaltar aqui a maravilhosa contribuição científica de Dobzhansky e a maneira fluída, simples e bela com que ele relatava seus dados e a elegância de que se revestia tudo o que passava para o papel.
Weinberg tem tudo isso, mas tem algo mais: é simplesmente coloquial a maneira que usa para relatar todos os fatos que enchem o seu livro. Ele está sempre contando histórias e, por isso, todo o seu livro representa uma grande história subdividida em inúmeras histórias menores. Quero ressaltar uma das pequeninas histórias dentro da história maior que é todo o seu livro: a história dos telômeros. Esta história começa na década de 30, com as descobertas feitas por Barbara McClintock e Herman Muller de que as pontas dos cromossomos do milho e das moscas-de-fruta têm propriedades especiais que impedem que eles se fusionem que, por qualquer motivo, passem a ocupar outros lugares ao longo dos cromossomos. Muller chamou as pontas dos cromossomos de ‘‘telômeros’’. Três a quatro décadas depois, James Watson (co-descobridor, com Crick, da estrutura física do DNA) verificou que os telômeros nunca eram duplicados com a precisão do resto dos cromossomos, quando cada célula se prepara para se dividir (mitose).
Alguns anos depois, Elizabeth Blackburn descobriu a estrutura química dos telômeros. Eles são sempre compostos da sequência timina-timina-adenina-guanina-guanina-citosina, repetida talvez mais de mil (mil!) vezes. O telômero parece tão pequenino e, no entanto, contém um mundo de moléculas! Surgiu, aí, um impasse: se os telômeros se replicam sempre com defeito, como é que os protozoários (os paramécios, por exemplo) se multiplicam indefinidamente, sendo, desta forma, imortais? Em 1984, o grupo de cientistas que trabalha sob a direção de Elizabeth Blackburn descobriu uma enzima especial - chamada telomerase - que tem por função regenerar os telômeros defeituosos, acrescentando-lhes o que lhes falta. Na década de 70, Olovnikov, um cientista soviético, entrou nessa linha de pesquisa: ele propôs uma teoria ligando os telômeros aos fenômenos da mortalidade celular. Eles, perdendo, pouco a pouco, a sua inteireza bioquímica, desprotegem os cromossomos, permitindo que eles se fusionem uns com os outros, assim desorganizando a célula e levando-a à morte.
Como diz Weinberg, é esse colapso telomérico que soa o alarme avisando a célula que se esgotou o seu suprimento de divisões. A teoria de Olovnikov estava certa: na década de 90 muitos cientistas descobriram que os telômeros das células humanas estão sempre se encurtando ao longo da vida. Viver é, pois, encurtar telômeros. Só permanecem inteiros os telômeros da linhagem germinal (que vai levar à produção de espermatozóides e óvulos), garantidora da imortalidade de cada um através de seus filhos e todos os seus demais descendentes. E por que motivo? Simplesmente pelo fato de que essa linhagem é a única que mantém sua produção de telomerase.
Assim é o maravilhoso livro de Weinberg, que alia precisão científica à beleza literária. Diria melhor: que alia a beleza da Ciência à beleza da arte de escrever bem. Se algum leitor chegou até aqui e possuia um pré-conceito contra a ciência, achando que a ela falta a beleza que sobra em suas colegas da Filosofia, das Artes e das Religiões, dou-lhe um conselho elementar: volte a ler Ciência na certeza de que, ali, há uma beleza sem par que você não encontrou por defeito seu.
- NEWTON FREIRE-MAIA é membro da Academia Brasileira de Ciências, presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e professor no Departamento de Genética da UFPR