Mary Neide Figueiró afirma que não se deve esperar que as crianças perguntem para instruí-las
Mary Neide Figueiró afirma que não se deve esperar que as crianças perguntem para instruí-las | Foto: Marcos Zanutto



De onde vêm os bebês? A pergunta aterroriza muitos pais que não conseguem identificar o momento ideal para conversar sobre sexo com seus filhos. Insegurança, vergonha e desconforto não faltam. Fora a dúvida sobre qual idade é a melhor para introduzir o assunto. A psicóloga Mary Neide Damico Figueiró, doutora em Educação e especialista em educação sexual, afirma que não se deve esperar que as crianças perguntem. Os adultos devem aproveitar de situações cotidianas para começar a tocar no tema. "Os pais devem aproveitar situações espontâneas, como uma tia grávida na família. A partir dessa notícia, é possível estabelecer o que pode ser aprendido em casa. Mas também há um espaço na escola para conversar sobre essas questões", explica Figueiró, que acaba de lançar um novo livro.

Intitulado "Educação Sexual: Saberes Essenciais Para Quem Educa" (Editora CRV) - informações sobre a venda no site www.maryneidefigueiro.com.br - reúne textos produzidos pela psicóloga ao longo de seus mais de 30 anos de carreira, grande parte deste período ela passou como professora da UEL (Universidade Estadual de Londrina), instituição a qual ainda tem ligação por meio de linhas de pesquisa como professora sênior. A publicação, originalmente editada com foco para a formação de professores, é abrangente inclusive para os pais. Eles são estrutura fundamental da educação de seus filhos. "Os pais educam ao dar um modelo positivo de vida a dois, mas, quando não se conversa sobre o tema, também acaba sendo uma forma de educação sexual", explica, que tira dúvidas sobre o tema em seu canal no Youtube.

Nesta entrevista à FOLHA, a psicóloga defende que a escola também é espaço para conversar sobre sexo com as crianças e alerta que a educação sexual, além de ensinar sobre a vida, é capaz de evitar casos de abuso. Ela ainda faz críticas aos profissionais de ensino que adiaram a implantação da matéria e defende que os professores precisam estudar o tema. "Ninguém vai ensinar a fazer sexo, a mudar a orientação sexual, até porque isso é algo da identidade de cada um, não há escolha ou opção. Esclarecer, não fazer campanha nem pró e nem contra. O professor deve falar dos temas ligados à vida, sim", conclui.

No que exatamente consiste a educação sexual?
A educação sexual consiste nas oportunidades em que pais e educadores têm para conversar com as crianças sobre as questões ligadas ao corpo e que envolvem a sexualidade, nas quais possam esclarecer as dúvidas que surgem. Os temas estão no cotidiano e as crianças acabam tendo conhecimento e, por isso, é bom que perguntem. O diálogo pode ser travado tanto em casa como na escola. Pode ter um caráter formal, planejado e intencional, quando um pai conversa com a ajuda de um livro ou quando um professor prepara uma aula para falar sobre métodos anticonceptivos. A educação sexual também acontece sem que os adultos se deem conta, no espaço das ações cotidianas. Os pais educam ao dar um modelo positivo de vida a dois, mas quando não se conversa sobre o tema também acaba sendo uma forma de educação sexual. Os filhos captam aí a mensagem que é um assunto que não deve ser falado e acaba se passando a ideia de que é um tabu. As crianças acabam buscando respostas entre os amigos, pela mídia ou pela internet, que é o pior caminho.

Quando é o momento certo para se tocar no assunto?
É importante antecipar essa formação e não se deve esperar as crianças perguntarem. Os pais devem aproveitar situações espontâneas, como uma tia grávida na família. A partir dessa notícia, é possível estabelecer o que pode ser aprendido em casa. Mas também há um espaço na escola para conversar sobre essas questões. Onde os alunos podem debater e discutir o assunto em um mesmo nível intelectual e de conhecimento. Normalmente, as crianças se sentem mais à vontade perguntando na sala de aula para uma professora de confiança. Quando maiores, as crianças pensam que perguntar sobre o tema significa que querer fazer sexo. Pode inibir a criança. Depende muito de como foi construída a relação com os pais, como foram as respostas às primeiras perguntas. Se os pais desconversam, ela não vai desenvolver uma confiança em voltar a perguntar.

Do que se trata o livro?
Trago neste livro tudo o que construí na minha prática profissional como docente na UEL ao longo de 30 anos. Tenho muitos artigos distribuídos em periódicos e outros em capítulos de livros pelo País. Agora decidi revisar e atualizar todos eles. A maioria surgiu a partir de convites para palestrar em instituições de ensino. Em um deles, "Educação Sexual: Como Educar no Espaço da Escola", trato de estratégias de ensino. Ele foi publicado em duas instituições e, depois, a editora Moderna me pediu para inseri-lo em um livro de professores de ciências para a sétima série. É um texto prático sobre como ensinar, mas ele também é útil para os pais porque traz subsídios não só para o professor, mas aponta formas de conduzir o diálogo.

A sociedade brasileira sofreu drásticas mudanças socioculturais nas últimas décadas. Hoje é possível afirmar que a iniciação sexual está mais precoce?
Em palestras, eu sempre perguntava aos jovens se eles se sentiam livres. Todos diziam que sim, mas eu garantia a eles que não são. Há hoje uma pressão para que se viva o que é dito para fazer e, se não fizer, a pessoa é careta. O filósofo francês Michel Foucault, no qual nos pautamos sobre a educação sexual, fala que a falta de liberdade não está só naquilo que proíbe, mas também naquilo que se manda fazer. O importante é a pessoa ter autonomia de pensar sobre o que quer fazer. Apesar disso, nas últimas décadas, houve uma mudança positiva para as mulheres que passaram a ter a vida sexual mais ativa sem esperar o casamento. Esse era um direito reservado somente aos garotos, mas o que temos visto é uma instigação ao sexo promíscuo na maioria das vezes. Há letras de músicas péssimas. A educação sexual na escola é uma chance que os professores têm de desconstruir essas letras com os adolescentes.

Em sua opinião, de que forma deveria ser implantado o tema na educação formal brasileira?
Tínhamos um bom começo: os Parâmetros Curriculares Nacionais, chamados de PCN, criados pelo Ministério da Educação em 1996. Eles foram distribuídos para todas as escolas e havia uma indicação sobre o que os professores deviam ensinar em cada matéria, série por série. E a Educação Sexual entrava como tema transversal, que poderia perpassar por todas as disciplinas. Português, por exemplo, pode pegar um texto de atualidade e fazer um gancho para debater. Acho essa uma maneira válida de trabalhar porque não fica a cargo de um único professor. Só que a escola tem que ter reunião para ter um planejamento conjunto. Agora o modelo foi substituído pela Base Curricular Nacional, que é um retrocesso, já que o ensino das questões ligadas ao corpo e à sexualidade ficam restritos junto à disciplina de Ciências e Biologia.

Os professores estão preparados para dar aulas sobre sexualidade?
Na verdade, todos os professores que fizeram licenciatura deveriam ter tido aulas de educação sexual, mas não têm. O ideal seria que depois houvesse uma formação continuada. A rede municipal e estadual poderia ter profissionais que dessem suporte, seria o ideal. Os professores têm muitas dúvidas e vejo que muitos não se sentem preparados. O assunto ainda é tabu. A aceitação dos professores em trabalhar a educação sexual nas escolas vinha crescendo de uma forma positiva, mas as discussões que surgiram sobre o tema abalaram essa trajetória. Os professores têm que trabalhar com os alunos para ganhar confiança e só então trabalhar com os pais. Teoricamente, seria ótimo trazer a família para dentro da escola, mas me pergunto até que ponto temos nas escolas profissionais para acolher esses pais e trabalhar essa temática. Falar para crianças e adolescentes sobre sexo, alertando sobre a seriedade do assunto, acaba sendo uma forma de levá-los a terem uma vida mais responsável.

Ajuda também na prevenção de abusos?
Escrevi um texto novo para esse livro que trata deste assunto: "Abuso Sexual Infantil: Como Fazer a Prevenção 'pra valer'." Somente agora as pessoas estão caindo em si sobre o tema. E não adianta começar a falar sobre quando a criança tiver 8 anos. É preciso falar ainda aos 2 anos, explicando sobre qual parte do corpo não pode ser tocada. Ensinar que não pode tocar em determinada parte do corpo da outra pessoa. Fazer uma prevenção direta e clara. Muitos textos e vídeos falam sobre o tema de forma indireta e a criança acaba não sendo capaz de entender. Os pais ainda hoje estão mal informados, cheios de preconceitos. Hoje, se educa com medo porque os pais não leem a respeito, não se informam.

Houve algum erro no caminho durante o processo da adoção do tema na educação brasileira?
Quando os PCNs surgiram, faltou às escolas abraçarem o material e colocarem em prática. Esse foi o grande erro. Esses discursos distorcidos de Ideologia de Gênero e Escola Sem Partido não teriam o alcance que têm hoje se nossas escolas estivessem mais amadurecidas em termos de estrutura para trabalhar a educação sexual.

Como ganhar a confiança e modificar o atual panorama da educação sexual no País?
Só tem uma maneira: os professores estudarem o tema da educação sexual e compreenderem de fato o que é, e como pode ser desenvolvido em cada disciplina. Teria que ter o desenvolvimento da convicção de que é papel da escola também contribuir nesta parte, porque trabalha temas ligados à vida. Eu garanto: os alunos passam a gostar mais dos professores que tratam desses temas, veem a escola de forma mais motivadora. Então a saída é essa. Ninguém vai ensinar a fazer sexo, a mudar a orientação sexual, até porque isso é algo da identidade de cada um, não há escolha ou opção. Esclarecer, não fazer campanha nem pró e nem contra. O professor deve falar dos temas ligados a vida, sim. Não devem se posicionar em regras, porque este é o papel da família. O papel da educação é discutir o assunto de forma científica sem fazer campanha para algum lado. Ensinar o respeito e a igualdade.