Um Coração no coração da república
A comemoração peculiar do bicentenário da independência, necessita mais do que nunca de gritos do Ipiranga
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segunda-feira, 05 de setembro de 2022
A comemoração peculiar do bicentenário da independência, necessita mais do que nunca de gritos do Ipiranga
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos
Dom Pedro I volta ao Brasil, a uma cidade surgida cerca de 130 anos após a sua morte! O país que o escorraçou em abril de 1831 obrigando-o a abdicar em favor do seu filho, ainda criança, recebeu-o agora com honras de chefe de Estado. O seu coração, protegido no formol desde a morte em Queluz em 1834 e guardado a cinco chaves na igreja da Lapa na cidade do Porto, será o convidado de honra do bicentenário da independência. A capital da república recebe o “imperador” que após ser o herói do grito do Ipiranga, ficou também marcado pelo desastre da Guerra da Cisplatina que foi uma catástrofe tanto para os militares, como financeiramente para o Império. Os brasileiros foram vencidos em 1827 e a paz só veio por meio da interferência inglesa que tinha interesses comerciais. Assim nos reza a história. O pobre Dom Pedro, nos últimos dias “amado” pelos portugueses do Rio e odiado pelos brasileiros, fugiu rumo à Europa. Escrevia a bordo: “Pedaços d´alma, pátria, filho. Pouco há que iguais manifestações de fazião em honra minha, objeto de igual enthusiasmo e regozijo público. E hoje! Possa a fortuna ser mais fel a meu filho, possa o seu coração nunca ser dilacerado como este que tanto amou os próprios que o desconhecem”.
Atravessou, portanto, o Atlântico em vida, duas vezes: em 29 de novembro de 1807 com nove anos, acompanhado de centenas de pessoas em 14 navios fugindo de Napoleão e depois fugitivo de novo com a esposa Amélia e outros, que embarcaram na fragata HMS Volage em 13 de abril de 31, com destino à França e mais tarde para os Açores, único reduto fiel à sua filha rainha dona Maria. Na terrinha, a estátua de Dom Pedro ocupa o centro das principais praças de Lisboa e Porto, com o título de Dom Pedro IV, rei de Portugal e faz jus às palavras de José Bonifácio, escritas a Pedro II e suas irmãs: "Dom Pedro não morreu. Apenas homens ordinários morrem, heróis não”!
Não é a primeira vinda do “imperador” ao Brasil após a morte! Em 1972, os militares quiseram usar a memória do rebelde do Ipiranga, trazendo os seus restos mortais da Igreja S. Vicente de Fora em Lisboa, onde repousavam com toda a dinastia de Bragança, para o mausoléu em S. Paulo. Ninguém duvida que foi um golpe de mestre, de quem apregoava um nacionalismo de “ame-o ou deixe-o”! A ironia histórica, nos mostrou que tanto o primeiro Pedro quanto o segundo, derramaram lágrimas de saudade pelo país que os obrigou a partir! Bolsonaro pressionou as autoridades do Porto para que o coração viesse ao Brasil. Não foi um processo fácil, mas a Câmara por maioria absoluta acabou concordando. Contudo, até as pedras da calçada da avenida dos Aliados, sabem do motivo dessa viagem.
A comemoração peculiar do bicentenário da independência, necessita mais do que nunca de gritos do Ipiranga, reproduzidos ao modo do enorme quadro original de Pedro Américo de 1888, que da realidade pouco tirou, mas que acabou recriando-a! O coração de Dom Pedro em Brasília, as majestosas manifestações militares esperadas e planejadas, visam nada mais, do que resgatar a memória mal contada, de uma independência ainda bem incompleta. Isso, porque a definição por excelência de um estado independente, não significa colocar militares na Amazônia para defendê-la de interesses estrangeiros e simultaneamente queimá-la sem dó, nem aprofundar ano após ano a desigualdade social, ou tolerar a violência contra negros, pobres e mulheres! Hoje, o grito do Ipiranga que esperamos é bem outro!
Crianças fora da escola, 10 milhões de desempregados, filas intermináveis de cirurgias no SUS, corrupção com o dinheiro público e relativização da verdade factual alimentando fake news, retratam uma dependência alguns tons acima daquela que alimentou o dilema de Pedro às margens do rio Ipiranga! Paradas militares com coração de um morto, ou translado de defunto, remete-nos para tempos arcaicos em que os mortos falavam mais do que os vivos! Por outro lado, se o passeio com restos mortais servisse para fazer-lhes justiça histórica, atenuaríamos substancialmente a falta de respeito com os seus últimos desejos de moribundo.
Padre Manuel Joaquim R. dos Santos - Arquidiocese de Londrina

