O biólogo norte-americano Philip Martin Fearnside, pesquisador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, afirma que grande parte da legislação ambiental e dos sistemas de fiscalização construídos em décadas para proteger a natureza foi perdida em sete meses do atual governo. Ele acrescenta que as mudanças terão impacto por décadas, inclusive com a destruição da biodiversidade e com influência na piora do aquecimento global. Para o especialiasta, o problema das queimadas na Amazônia afetam todos os brasileiros, uma vez que podem piorar a crise hídrica e gerar ciclones inclusive no Paraná.

Desde a Rio 92 (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento), o Brasil tem sido signatário de compromissos ambientais importantes como o Protocolo de Kyoto, a Carta da Terra, a Agenda 21 e o Acordo de Paris, que possuem entre seus objetivos mitigar problemas mundiais do setor. Entre as metas estabelecidas, o País havia se comprometido em reduzir até 2025 as emissões de gases de efeito estufa em 37% na comparação com 2005. Para Fearnside, é evidente que as ações do atual governo não estão alinhadas em cumprir esses objetivos.

Philip Fearnside afirma que queimadas na Amazônia podem piorar crise hídrica e gerar ciclones no Paraná
Philip Fearnside afirma que queimadas na Amazônia podem piorar crise hídrica e gerar ciclones no Paraná | Foto: Divulgação/ Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

As metas levam em conta o papel das unidades de conservação e das terras indígenas como áreas de florestas manejadas. No entanto, dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) demonstram que o número de focos de incêndio florestal aumentou 83% entre janeiro e agosto de 2019 na comparação com o mesmo período de 2018, com 72.843 pontos mapeados.

O repasse de recursos do Fundo Amazônia, programa bancado com recursos doados a fundo perdido pela Alemanha e Noruega, foi suspenso quando o atual governo declarou a intenção de alterar seu funcionamento e destinar recursos para indenizar proprietários de terras. Parte desses recursos era utilizada no combate a focos de incêndio nas florestas. "Eu não sei explicar ou interpretar o discurso do presidente. O fato do presidente e alguns ministros não aceitarem os fatos científicos de que há aquecimento global é gravíssimo, muito mais do que problemas de discurso", declara o biólogo.

O desmatamento e as queimadas têm sido um dos principais assuntos no Brasil e no mundo neste ano. Por que esses problemas ambientais têm gerado tanta repercussão e polêmica?

A explicação é a atuação do atual governo, porque tem um constante esforço contra o meio ambiente e muitas medidas concretas de basicamente acabar com a aplicação de multas pelo Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]. Essas notícias circulam rápido pelo WhatsApp na região amazônica, entre os desmatadores. É preciso pensar em alternativas de evitar quebrar essas leis ambientais. Recentemente ministros visitaram uma plantação de soja ilegal e até o próprio presidente foi multado por pesca ilegal antes de ser eleito. Ele conseguiu anular a multa do Ibama e demitiu o agente que a aplicou. Essa é uma interferência dentro do órgão que manda uma mensagem para todos os funcionários que aplicam multas, muito claramente favorecendo o desmatamento.

Como está a agenda ambiental do Brasil? O País foi signatário do Protocolo de Quioto, do Acordo do Clima de Paris, da Carta da Terra e da Agenda 21. Tem cumprido as políticas ambientais estabelecidas nesses pactos?

Estamos em uma época muito ruim para isso no Brasil, que não quer cumprir as coisas acordadas. Esses níveis de desmatamento são exatamente o oposto do que foi acordado em Paris. Imagine o que pode acontecer em três anos e meio pela frente só neste atual governo. Muitas coisas que estão sendo feitas terão impacto por décadas à frente e não só por três anos e meio.

De que forma ocorrerá esse impacto?

É importante entender que são coisas que afetam o Brasil diretamente. Vocês, do Paraná, recebem água da Amazônia. O pico de transporte de água, nos chamados rios voadores, chega a 70% da água com as qual se enche todos os reservatórios de hidrelétricas da parte centro-sul do País. Se esse pico de chuvas falha, não se recupera no restante do ano. Grandes cidades como São Paulo já estão no limite de fornecimento de água, usando o volume morto dos reservatórios.

Boa parte do desmatamento é atribuída aos agricultores e aos pecuaristas. Eles podem ser afetados por essa crise hídrica?

O setor agropecuário será diretamente atingido pelas mudanças climáticas, pela seca, além de ser diretamente impactado pelos boicotes. Esse setor é minha esperança para mudar a opinião do governo. É difícil, mas lógico que esse grupo poderia influenciar o governo. O outro grupo são os militares, que têm o papel de defender a segurança nacional, já que as mudanças climáticas são fatores que podem afetar a segurança nacional.

O que pode acontecer no Brasil se houver aumento da temperatura em 2ºC a 5ºC?

A temperatura no Brasil irá aumentar mais do que esses números, que é a projeção da média anual global. Se a média global subir 4ºC até 2100, na Amazônia seria de 4,8ºC em média. Só que nos meses mais quentes, de junho a agosto, seria de 6ºC a 8ºC de aumento. Como o dia mais quente é sempre bem maior do que a média, mesmo se fossem 8ºC, se hoje tem dias que chegam a 40ºC, então se subir 8ºC essa temperatura seria de 48ºC, mas poderia superar 50ºC. Isso afeta a mortalidade humana. Olha o que aconteceu durante o El Niño de 2003, quando morreram milhares de pessoas na França com as ondas de calor.

O que uma queimada pode provocar na floresta?

Quando se tem um incêndio na floresta, isso deixa muita madeira morta e também abre buracos na copa, por onde entra o vento e que ajuda a ressecar mais a terra por dentro. Toda vez que o fogo entra pelas pastagens, encontra madeira morta e mata mais árvores. Então é um círculo vicioso que vai continuando até acabar com a floresta. O que preocupa é que este ano foi um ano normal em termos de seca, pois geralmente os incêndios acontecem em anos de El Niño ou de Dipolo do Atlântico, no caso 2005 e 2010. (El Niño é o aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico e o Dipolo do Atlântico é a mudança anômala na temperatura da superfície da água do mar no Oceano Atlântico Tropical, ou seja, quando as águas do Atlântico Tropical Norte estão mais quentes e as águas do Atlântico Equatorial e Tropical Sul estão mais frias. Esses fenômenos desregulam a temperatura do planeta). É uma coisa que tem danos importantes para o clima, entre outros impactos para a biodiversidade.

Quanto tempo leva para uma área de mata queimada se regenerar?

O problema é que isso é completamente teórico, porque, na verdade, depois de queimar, é muito mais provável outro incêndio entrar na floresta. Se fosse possível de alguma forma isolar a floresta, ela iria se recuperar em um século , pelo menos em termos de biomassa. Mas é uma coisa que nunca acontece na prática.

Qual o principal efeito das mudanças climáticas no Paraná?

No Paraná tem outro aspecto, que é o fenômeno anticiclone que ocorre no Atlântico Sul. É um círculo de ventos no sentido anti-horário que deve encostar com mais frequência na costa do Brasil. Vocês vão ter mais furacões como o Catarina (março de 2004). Teria também aumento do nível do mar. O problema desse aumento do nível do mar é que não seriam poucos centímetros, mas o que é acrescentado às ondas durante esses fenômenos causa danos muito maiores. Boa parte da população brasileira vive no litoral. Essa é uma região que ficará mais exposta a esse impacto.

A Amazônia é só um dos biomas do Brasil. E o papel dos outros biomas nessas mudanças climáticas?

O cerrado está sendo destruído até mais rapidamente que a floresta amazônica. Tem bastante carbono no cerrado, nem tanto nas árvores, mas tem muito nas raízes. Quando são arrancadas, apodrecem e emitem gases e isso também é acrescentado à emissão brasileira de carbono. A Mata Atlântica já foi praticamente toda destruída. Tem pouca coisa da vegetação original. Outros biomas como o Pantanal enfrentam ameaças como a hidrovia que vem se expandindo e isso vai drenando parte da água e expondo o solo. Os pampas também vêm se convertendo em área para a agricultura e isso acaba com a biodiversidade.

O senhor mencionou riscos à biodiversidade. Quais os riscos de se perder espécies não conhecidas, ou que já são conhecidas e correm o risco de extinção?

Tem muitas espécies que são endêmicas e que só acontecem em um lugar. Se aquele lugar é transformado em pastagem, aquelas espécies vão à extinção. Com essa asseveração de desmatamento, isso implica em extinção de espécies. Muitas espécies na Amazônia, por exemplo, não são conhecidas da ciência, sobretudo insetos. Mesmo grandes árvores estão sendo descobertas ainda com frequência. Não é uma coisa rara. Até mamíferos de porte razoável ainda estão sendo descobertos. É uma coisa que tem esse perigo, sim.

Há quem diga que impedir os agropecuaristas de avançar sobre as florestas é limitar o progresso e o desenvolvimento econômico.

É uma visão errada sobre o que é progresso. Transformar a Amazônia em pastagem não é isso. Depois de cortar as árvores, o número de empregados para manter as cercas é absolutamente mínimo. Não é isso que sustenta a população da região. As fazendas pecuárias não geram o que é considerado desenvolvimento, que é a melhoria da vida da população local. Se quiser melhorar a vida das pessoas tem que ter serviços básicos, escolas e postos de saúde, coisas que boa parte da população não tem acesso. Tem que ter maneiras que valorizem a floresta. O valor da floresta está em manter o clima e a biodiversidade. São os serviços ambientais que a floresta faz e ninguém está pagando. É uma coisa que eu estou tentando sensibilizar a população durante quatro décadas, como alternativa à atual economia da Amazônia que é baseada na destruição da floresta.

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