Leio nos jornais a respeito da Conferência Internacional sobre o Trabalho das Crianças, realizada em Oslo, e fico pensando se de fato esses encontros trazem alguma contribuição concreta. Naturalmente, não estou negando a importância das idéias. Acredito mesmo que tudo se inicia na mente para depois de se transformar em realidade. Mas o que tento discutir é a diferença entre a teoria e prática quando a realidade é discutida por intelectuais ou detentores de cargos públicos em congressos, seminários, simpósios etc.
Coloco isso porque geralmente os intelectuais vivem numa esfera de existência muito particular ligada ao grupamento a que pertencem, e que juntamente com os conceitos aprendidos nos bancos universitários acabam por gerar uma peculiar visão de mundo muitas vezes desvinculada da realidade, adornada com terminologia própria a cada área profissional e evidenciada em comportamentos típicos.
Quanto aos detentores de cargos públicos, sobretudo de altos cargos públicos, quase sempre chegam ao topo de suas carreiras através de facilidades políticas e não por preparo. Até parece que quanto mais alto é o cargo menos exigências são feitas, ao passo que, por exemplo, em concursos públicos tipo Receita Federal, se exige do candidato toneladas de conhecimento que jamais ele porá em prática se conseguir a proeza de ser admitido. Isto faz as delícias dos cursinhos preparatórios e o inferno dos candidatos, cuja maioria, por mais que esfalfe, não logrará alcançar o cobiçado emprego onde a remuneração é compensadora e o trabalho pouco e fácil.
Diga-se de passagem, que a incompetência crônica revelada em altos cargos públicos, demonstra uma faceta de nossa cultura que muitas vezes salientei quando afirmei que no Brasil raramente prevalece o mérito. No país do dá-se-um-jeito, conta mais a fachada, o palavrório floreado que engana fácil, o ciclo de relacionamentos que pode facilitar (isso nem sempre acontece) o bom emprego.
Por conta de tudo isso, fica difícil sair de congressos ou de outros tipos de encontro alguma coisa mais palpável, e a Conferência de Oslo parece não ter fugido à regra. Com relação ao item que proíbe todo trabalho infantil que possa impedir as crianças de frequentarem regularmente a escola, disse o ministro do Trabalho Paulo Paiva, segundo O Estado de São Paulo de quinta-feira passada, ‘‘que esse é um debate mais conceitual do que político, lembrando que a posição brasileira é a de apoiar toda iniciativa que promova a remoção das crianças das ruas para as escolas, um sonho que um dia virará realidade’’.
Com todo o respeito pelo ministro, creio que o debate do trabalho infantil, ao contrário, é mais político que conceitual, estando profundamente ligado às políticas governamentais voltadas para o bem-estar da sociedade. Infelizmente, porém, essas políticas, incluindo as de âmbito estadual e municipal, costumam evidenciar muito discurso e pouca ação. Além do mais, o que se nota é que os órgãos que deveriam ser responsáveis pelos problemas sociais costumam transferir as responsabilidades uns para os outros ou para instâncias mais vagas, perdendo-se assim no jogo de empurra as responsabilidades de uma ação mais efetiva. Quanto ao apoio ‘‘a toda iniciativa que remova as crianças das ruas para as escolas’’, se processa mais em termos de entidades particulares, que por motivos religiosos ou altruístas praticam a duras penas uma filantropia de pires na mão diante dos poderes constituídos. E essa situação, sem dúvida, deverá adiar bastante o sonho do ministro.
Quanto a dona Ruth Cardoso, no mesmo jornal já citado, discorda do primeiro-ministro da Noruega quando este afirma ‘‘estar na pobreza a raiz do problema que atinge fortemente os direitos das crianças’’. A primeira-dama se diz convencida de que ‘‘a causa do problema não é apenas a pobreza, pois existem outros fatores importantes’’.
De fato, existe o fator cultural mais amplo, que como uma moldura enquadra as mazelas sociais do Brasil e se reflete em atitudes e valores ligados a nossa formação histórica. Mas também com todo o respeito por dona Ruth, reconheço que raramente as crianças das classes mais altas deixem de ir à escola para trabalhar ou para vagar pelas ruas.
E quando dona Ruth Cardoso afirma ‘‘que lugar de criança não é na fábrica, mas na escola’’, não aceitando a opinião da classe média de que é melhor uma criança trabalhando do que na rua, digo como classe média que se a escola é o ideal, o trabalho adequado, honesto e não explorado ainda é preferível do que a rua. A rua para a criança é a escola de banditismo, de dependência de drogas, de prostituição. E enquanto crianças miseráveis preferirem a rua no lugar das casas dos seus pais miseráveis, será inútil convênios entre o governo e empresas aéreas nacionais e estrangeiras com o objetivo de coibir o turismo sexual.
Fica, pois, a impressão, de que em Oslo foi exibido, pelo menos da parte dos nossos representantes, apenas o conhecido viés acadêmico, que se esfumará na dura realidade dos países subdesenvolvidos, inclusive, na do Brasil.