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"A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo"
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
"A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo"
Eduardo Tozzini
Analisando os 13 capítulos do relatório da Polícia Federal, veja que se referem a atos relativos ao período de vigência do mandato presidencial (ver folhas 7 e 841 a 849). Por exemplo, note que a Lei de Improbidade Administrativa (n. 8.429/1992, atualizada em 2021), aplica-se ao agente político que exerce sua função inclusive por eleição, "no exercício do mandato"; aparentemente se aplicando ao presidente.
Então, em 2017, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região extinguiu o processo sem julgar o mérito, de ação por improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal, com suporte na lei mencionada, contra o então ex-presidente Lula. Assim também aconteceu com a ex-presidenta Dilma sob acusação, pelo MPF, de "pedaladas fiscais" (Acórdão de 21/8/2023). Em ambos os casos o TRF-1 extinguiu os processos, sob o fundamento de que os atos praticados quando na vigência do mandato são regidos por norma específica aplicada ao presidente (CF/88, art. 85 e parágrafo único, e Lei 1.079/50). Logo, não sendo processado e julgado enquanto presidente, não se pode processá-lo depois pela legislação ordinária, afastando toda uma estrutura procedimental e material decorrente da prerrogativa do mandato, que exige a permissão prévia da Câmara dos Deputados, tanto para que seja julgado no STF quanto no Senado (CF, art. 86).
Pois bem, o indiciamento, visando a responsabilidade do ex-presidente pelos fatos a ele imputados, em tese, que vem à luz quase dois anos após o término do mandato eletivo, se enquadra claramente na Lei 1.079/1950 (atualizada em 2000), que define os crimes de responsabilidade, aplicada por força da Constituição, art. 85, parágrafo único, que a recepcionou na parte mencionada. Essa lei especial tipificou cada crime no artigo 4, em 8 incisos, e nos artigos 5 até ao 12, cada inciso foi minuciosamente detalhado.
Veja que no art. 6º, consta "Dos crimes contra o livre exercício dos poderes constitucionais", contendo oito espécies, semelhante ao Código Penal, art. 359-L (tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, restringindo o exercício dos poderes constitucionais); no art. art. 7º, inc. 6, vê-se o crime de "subverter ou tentar subverter por meios violentos a ordem política e social"; e mais adiante, no art. 8º, tratou-se "Dos crimes contra a segurança interna do país", com oito espécies, tais como tentar mudar por violência a forma de governo (inciso 1), e especialmente o inciso 4: "praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal"; ou mesmo permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública (inciso 7). Toda essa norma especial traz a mesma moldura fática do Código Penal, art. 359-M (tentativa de golpe de Estado).
Ao tratar da competência do STF para processar e julgar o presidente, o jurista Pontes de Miranda, à luz da Constituição de 1967 (Tomo 3, p. 82), equivalente ao texto atual, observou que o Supremo não tem competência para aplicar pena se o crime supostamente cometido pelo presidente é também de responsabilidade (como vimos na L. 1.079/50); nesse caso, a responsabilização judicial só se inicia após a decisão do Senado Federal (art. 52, parágrafo único), porque se funda no art. 52, inciso 1 (competência privativa do Senado para julgar crime de responsabilidade), e não no art. 102, 1, b (competência do STF para julgar o presidente por infração penal).
Força é ver que o art. 360 do Código Penal revogou todas as disposições em contrário, mas manteve, dentre as exceções, a legislação especial sobre crimes de responsabilidade do presidente (decreto n. 30/1892 ab-rogado pela L. 1.079/50), com nítida prevalência sobre a legislação ordinária. Em qualquer hipótese, é competência privativa da Câmara dos Deputados autorizar tais processos (art. 51, inciso 1 e art. 86) sob pena de ofensa à separação dos Poderes (Constituição, art. 2º). A lei a ser aplicada é aquela que incidiu à data dos fatos narrados (Pontes de Miranda, Constituição Federal de 1967 comentada, Tomo 3, p. 42, parágrafo 3º).
Portanto, o teor do indiciamento, por se tratar de atos relacionados ao então presidente, se submete primeiramente ao Rito Especial da Constituição, ao qual se aplica a Lei 1.079/50. Ocorre que, "A denúncia só poderá ser recebida enquanto o denunciado não tiver, por qualquer motivo, deixado definitivamente o cargo." (art. 15). O império do devido processo constitucional, em sua sabedoria, força e beleza, não pode ser desprezado.
Eduardo Tozzini, advogado.

