Solidariedade incompleta
O brasileiro é facilmente motivado para ajuda espontânea, mas é refratário a políticas que promovam avanços nos direitos sociais
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quarta-feira, 05 de junho de 2024
O brasileiro é facilmente motivado para ajuda espontânea, mas é refratário a políticas que promovam avanços nos direitos sociais
Luis Miguel Luzio dos Santos
Solidariedade pode ser definida como a amálgama que une indivíduos que se percebem interdependentes e identificados com o destino uns dos outros, compelidos à responsabilidade de agir em seu favor. É a capacidade de perceber e compreender o outro como é, acolhê-lo como semelhante, sem forçar para que se torne igual. A solidariedade é o mais importante e necessário conteúdo para o desenvolvimento do ser humano.
A solidariedade voluntária tem-se manifestado de forma particularmente virtuosa em relação às vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul e merece ser exaltada. As imagens comovem e fazem aflorar os sentimentos mais nobres, como a empatia e a compaixão pelo semelhante. Cada um, de alguma forma, é projetado para aquele contexto de desespero e entende que poderia ser com ele. Diante de tamanha dor e sofrimento, é difícil não se sentir compelido a ajudar. A solidariedade voluntária é uma característica marcante da cultura brasileira e presente, de alguma forma, em todos os povos.
Todavia, esse traço admirável de encontro com o semelhante em situação extrema de vulnerabilidade e o impulso desinteressado para aliviar sua dor, paradoxalmente se confronta com a pobreza nacional em relação à solidariedade institucional, entendida como o pacto social formal estabelecido na vida em sociedade, em que se ultrapassa a boa vontade e se constroem bases para um projeto de convivência justa, comprometido com o bem-comum. Tem sua origem ligada aos estados modernos, com o avanço dos direitos civis, políticos e sociais, e teve seu ápice com os modelos de estado de bem-estar social, norteados por ideais de justiça social e de direitos universais.
Diferentemente da solidariedade voluntária, a solidariedade institucional é frequentemente alvo de resistência de certos grupos sociais. O brasileiro é facilmente motivado para ajuda espontânea, mas é refratário a políticas que promovam avanços no plano dos direitos sociais e no exercício da cidadania. É sintomático que a lei que regulamentou o trabalho doméstico só tenha sido aprovada em 2015. Exaltam-se as doações para os mais vulneráveis, mas resiste-se a mecanismos de transferência direta de renda, como o bolsa família, cotas sociais e raciais, reforma agrária, tributação progressiva sobre renda e patrimônio.
Trata-se de um paradoxo descortinado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, quando abordou a ideia de “homem cordial”, entendendo o brasileiro como um povo movido fundamentalmente por sentimentos e emoções, mas pouco afeito a constructos racionais-institucionais que mexem com a estrutura social vigente, refratário a novos direitos e obrigações visando mudar o status quo dominante. Vale ressaltar que somos a sociedade mais injusta do planeta, algo naturalizado por parte considerável da população, demonstrando a precária solidariedade institucional.
É importante ter clareza que a solidariedade institucional não substitui a solidariedade voluntária, não é uma ou outra, já que as duas se complementam. A primeira é particularmente apropriada para dar bases para a construção de uma sociedade justa, racionalmente organizada, garantindo segurança social, inclusão, proteção e oportunidades para os menos afortunados.
Por sua vez, a segunda, é pródiga em afetos, age por meio do cuidado individual, vale-se da sensibilidade de cada um, algo valoroso e insubstituível. É por meio da conjugação entre solidariedade institucional e a voluntária que se avançará para uma solidariedade integral, capaz de unir corações e mentes num projeto de humanização do humano, certamente o nosso maior desafio como civilização.
Luís Miguel Luzio dos Santos
professor de socioeconomia da UEL