Embora nosso processo de empoderamento nacional tenha começado 14 anos antes, com o desembarque da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, o Brasil convencionou celebrar o marco zero da sua emancipação com o tal grito de um pálido monarca em setembro de 1822.

Imagem ilustrativa da imagem Sem convivência, as praças adoecem
| Foto: Pedro Marconi

A festa do Bicentenário se aproxima com o aniversariante cabisbaixo por uma crônica crise econômica/política persistente, sem qualquer perspectiva de fim nos próximos anos.

O presente de pobreza e violência facilita as reflexões incontroláveis da efeméride, sobre tudo que não fizemos nesta jornada de dois séculos, sempre distraídos com tanto sol, com tantas orações desesperadas, com tanto futebol, com tantas paisagens exageradas.

Entre os atoleiros da História, vamos seguindo, confortados pelo nosso idioma, cantarolando todas as canções emocionantes, aquelas que traduzem nossa alma perturbada e que enchem de graça a rotação e a translação da vida neste mundo de acasos.

Dom Pedro I, o português que bradou sob cólicas horrendas pela Patriazinha, é homenageado por uma praça em Londrina.

Ela está em reconstrução, vejam só.

A obra está praticamente concluída. Um logradouro de traços sóbrios e elegantes, com paisagismo certeiro, agora bem iluminado.

À noite, os operários saem de cena e já é possível atravessá-la, com o fascínio típico de quem desbrava um território novo.

No silêncio do seu centro, é impossível se livrar da beleza da cidade e da sensação de que ela fica mais saudável e acolhedora com um equipamento assim.

Este instante de contemplação, este sentimento de conquista que flerta com os sonhos confessáveis de cidadão, contudo, não passam de uma negação do que esta praça evoca.

Porque todo mundo sabe que aquela praça sempre existiu para todos nós, bem antes das Torres Gêmeas e da loja do MacDonalds.

Na verdade, existia para quem gostaríamos que não existisse.

A Dom Pedro I era um depósito de brasileiras e brasileiros desafortunados, com suas barracas, panelas, vícios, excrementos e cheiro de urina.

Um lugar proibido para a Londrina branca e limpinha.

Incômodo enclave que nos lembrava a lista de erros que temos elaborado desde que o homenageado na placa tirou as rodinhas da nossa bicicleta.

Poucas coisas retratam com tanto simbolismo o nosso fracasso quanto nossas praças públicas.

O Brasil branco costuma desfrutar delas apenas quando faz turismo no estrangeiro.

Nas redes sociais, exaltam como os europeus se apoderam dos gramados no verão, conversando, namorando, bebendo vinho com amigos, lendo jornais ou apenas cochilando e ouvindo música relaxante no fone de ouvido.

Enfim, entendem o valor do espaço comum, do convívio, da urbanidade. E entendem como perdemos tudo isso com os desenhos tortos das nossas escolhas.

O abandono das praças é o próprio abandono de um projeto nacional de integração no sentido mais profundo.

Sem diretrizes de inclusão e desenvolvimento, a organização social à brasileira criou um mundo hostil para todos, um salve-se quem puder com gente armada, carros de vidros fechados, mendicância, assaltos, shoppings centers, condomínios fechados, favelas e dimensões culturais incomunicáveis.

As praças são territórios condenados nesta realidade de insensibilidade e medo.

Sem reformar a consciência nacional, a obra de uma praça pública sempre permanecerá inacabada.

Lúcio Flávio Moura, jornalista