Grande parte dos países teve nas ferrovias a sua principal alavanca de desenvolvimento. Elas romperam sertões, ultrapassaram vales, atravessaram montanhas. Levaram boas novas. Transportaram ideais e sonhos. Abasteceram as guerras e mataram, de forma rápida, as saudades ao encurtarem distâncias. Foram moedas de troca no saldo de dívidas de muitos países, inclusive o nosso.
Sem as ferrovias, por exemplo, o Canal do Panamá não teria saído do papel. A maria- fumaça, por sucessivas décadas, foi sinônimo de prosperidade, de interiorização e de progresso tecnológico. Nomes lendários trilharam a fama dentro e fora de luxuosíssimos vagões.
No Brasil não foi diferente. As estradas de ferro transportaram nossas riquezas e a nossa gente. Cidades se orientavam pelo apito ou pela fumaça, mesmo que, invariavelmente, com certo atraso. A novidade vinha de trem.
Muitas cidades cresceram ao redor de uma estação. Clubes de futebol como Ferroviário, Araraquara, Noroeste, Jundiaí, Estrada, América e Nacional – para ficar só no Sudeste – profissionalizaram-se e foram formados pela família ferroviária, em todo o País.
Entretanto, a empresa de transporte férreo foi perdendo força no setor à medida que governos fracos ficavam reféns de uma dívida externa cada vez maior.
Assim, a desnacionalização foi posta em prática para cumprir os desejos ‘‘ante a inevitabilidade’’ dos cenários econômicos desenhados pelos burocratas especuladores em países emergentes. Primeiro, com o consenso de Washington; depois, soprado pelo vento do pensamento dito moderno e global com o projeto neoliberal.
Obedientes, abriram os mercados e a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) foi retalhada em diversas empresas, modelo seguido em todos os segmentos da nossa economia. Depois, foi arrendada.
Em nosso caso, a malha ferroviária de 6,5 mil quilômetros entre São Paulo e Rio Grande do Sul, com milhares de vagões, centenas de locomotivas, de estações e de pátios de circulação, rende à ex-RFFSA míseros R$ 83 mil por mês. A concessionária América Latina Logística (ALL) teve um lucro no ano passado de R$ 26 milhões, talvez o maior da história deste trecho.
Para isto acontecer, a receita neoliberal foi seguida à risca. Foram demitidos quase 5 mil trabalhadores dos 6,3 mil. Depois, mesmo em baixa escala, mas perigosa, foi adotada a malfadada terceirização de mão-de-obra.
Além disso, mudaram radicalmente o processo de manutenção de máquinas e da conservação da malha ferroviária, descumprindo, até, os manuais que regem o sistema ferroviário brasileiro e mundial.
Não menos importante, a elitização promovida, ao priorizar os grandes clientes, fez perder-se o histórico cunho social que era contemplar o transporte de cargas e de passageiros aos excluídos do caríssimo sistema rodoviário.
Por último, foram desativados pátios, estações, e mais de 900 quilômetros de malha ferroviária foram abandonados, os quais deverão ser devolvidos daqui a trinta anos, quando findará a concessão.
São receitas amargas num país socialmente injusto. Muitas delas foram importadas pelos gélidos frequentadores de Wall Street. Seriam elas o ovo de colombo da sociedade moderna e globalizada? Talvez, se a face perversa, esta sim inevitável, não viesse à tona.
O elevado número de acidentes seguidos de descarrilamentos assusta e faz a população fugir ao ouvir um apito de trem. As concessionárias operam na faixa de riscos constantes, ante a dispensa de milhares de trabalhadores.
A carga horária de 12 a 14 horas, que a empresa propaga como apego e dedicação ao trabalho, remete-nos a regimes escravos e imprudentes tratando-se de setores de manutenção e controle de tráfego.
Não. Moderno não é privar o trabalhador do convívio familiar nem é descarrilar o lucro para os países estrangeiros ou ainda drenar os substanciais recursos do BNDES – que se destinariam para a pequena e média indústrias – para as empresas mais ricas do Planeta. Será que a ex-RFFSA não faria melhor se dispusesse destes bilhões de reais, nesta relação pra lá de matriarcal?
Tal dúvida jamais será esclarecida se os lucros vierem sempre antes do sujeito homem. Ainda assim, a força do vento neoliberal, movida pela desenfreada locomotiva da globalização, não impede que a cada dia aumente o número de passageiros que não embarcam nesse itinerário de entregação nacional. A luz no fim do túnel deve aparecer mostrando que uma outra viagem é possível.
- RASCA RODRIGUES é engenheiro agrônomo em Curitiba