Luiz Carlos Dias, pesquisador
Luiz Carlos Dias, pesquisador | Foto: Marcos Zanutto



Há um ano, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) deu o pontapé inicial ao trabalho de validação da fosfoetanolamina para o tratamento do câncer. A iniciativa se deu depois de uma grande polêmica nascida dentro da Universidade de São Paulo (USP), onde, segundo relatos, cápsulas do produto eram produzidas e distribuídas gratuitamente à população, sem controle ou acompanhamento, sob a expectativa de combater o câncer. O assunto gerou comoção nacional e o governo decidiu buscar respostas.

Na última segunda-feira (21), um dos responsáveis por essa busca esteve em Londrina. O pesquisador Luiz Carlos Dias abriu a 32ª Semana da Química da Universidade Estadual de Londrina (UEL), justamente com uma palestra sobre aquela que passou a ser chamada de "pílula do câncer".

Membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-Inofar) e coordenador do Laboratório de Química Orgânica Sintética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Dias alega que a questão da fosfoetanolamina vem sendo conduzida no País como ferramenta política, com irresponsabilidade, desrespeitando protocolos internacionais. Já nos primeiros resultados das análises, ele se tornou cético em relação à eficácia da substância e considera "uma grande perda de tempo e de dinheiro" a insistência nos testes.

Qual foi a sua participação nos testes da fosfoetanolamina?

Eu participei da fase inicial dos estudos, a parte de análises de caracterização do conteúdo das cápsulas provenientes do Instituto de Química da USP de São Carlos. Eles nos forneceram dois lotes de cápsulas e um lote do material a granel. Nossa tarefa era analisar o composto e prepará-lo para que depois pudessem ser feitos os testes in vitro e in vivo. A primeira coisa que fizemos foi pesar as cápsulas. O rótulo dizia que havia 500 miligramas de fosfoetanolamina, mas percebemos que cada cápsula tinha quantidades muito diferentes: 230, 240, até 500 miligramas. Isso mostrou que a produção era feita em um processo muito artesanal, quase manual, de preenchimento das cápsulas. Essa primeira observação já foi bastante surpreendente porque nós não esperávamos encontrar tamanha irregularidade no preenchimento das cápsulas. Nós também acreditávamos que havia um único componente na cápsula, que seria a fosfoetanolamina sintética. Mas, para nossa surpresa, o que observamos foi uma mistura muito grande de componentes.

O que mais havia nas cápsulas?

Nós detectamos cinco componentes em quantidades consideráveis e mais alguns em quantidades insignificantes. A fosfoetanolamina estava presente em apenas cerca de 32% do material. Os outros componentes, que eram impurezas e não deveriam estar lá, estavam numa concentração maior que a fosfoetanolamina. São resíduos do processo de produção da fosfoetanolamina. Existe uma etapa chamada purificação, que remove essas impurezas. Só que eles fizeram essa etapa de uma maneira muito mal conduzida e essas impurezas ficaram lá. Isso é muito grave, porque eles estavam distribuindo isso para a população e deveriam ter, pelo menos, um rigor maior com relação ao controle da pureza.

A partir daí, para onde caminhou o estudo?

Nós determinamos qual é a atividade de cada um dos componentes encontrados nas cápsulas, se têm efeito anticâncer, se são tóxicos, se oferecem algum efeito prejudicial. Essas informações foram encaminhadas para os laboratórios responsáveis pelos testes in vitro e in vivo. Esses ensaios teriam que ser feitos com o mesmo material das cápsulas provenientes de São Carlos, por causa da patente, mesmo com toda a mistura que havia. Os testes in vitro são testes em culturas de células e os testes in vivo são feitos em pequenos animais, como camundongos. Esse é o protocolo seguido no mundo inteiro.

E o que esses testes apresentaram?

A fosfoetanolamina sozinha, pura, não tem atividade nenhuma contra o câncer. Isso ficou comprovado pelo grupo do MCTI e já era conhecido, inclusive, pelo grupo de São Carlos. Já a mistura tem uma pequena atividade contra o câncer que não vêm da fosfoetanolamina, mas de uma das impurezas, a monoetanolamina. Ainda assim, é uma atividade marginal, pequena e só em melanomas. São resultados muito menores do que outros antitumorais já existentes hoje no mercado, que nem são potentes. Por isso, não faz muito sentido continuar.

Mesmo diante desses resultados o estudo teve sequência?

Pelos resultados in vitro e in vivo realizados pelo MCTI, essas moléculas jamais chegariam a ser testadas em seres humanos. Para você chegar aos testes em seres humanos, precisa ter atividade comprovada in vitro, depois in vivo e com modelos muito bons. Geralmente, se não passa nessa fase, o estudo não prossegue para animais de maior porte, como cães, porcos e macacos, para depois chegar a seres humanos. Mas uma etapa de ensaios em seres humanos estava para ser iniciada pelo MCTI. O problema é que aconteceu tudo o que aconteceu no governo e tudo parou. Não sei como e se vamos seguir com os testes. Até porque o governo de São Paulo já pulou direto para os testes em pacientes com câncer. Eu particularmente acho que não deveria se duplicar esforços, investir tempo e mais dinheiro nessa questão. O que o MCTI fez já trouxe resultados e trouxe muita luz para essa questão.

Existe uma pesquisa paralela em São Paulo?

Sim. Ao mesmo tempo em que fazíamos o estudo pelo MCTI, o governo de São Paulo contratou o laboratório PDT Pharma, em Cravinhos, para preparar a fosfoetanolamina em quantidade suficiente para encaminhar para o Instituto do Câncer de São Paulo, o Icesp, para que pudessem ser feitos testes em pessoas. Eles atropelaram o protocolo e foram direto para os testes em pacientes, com a justificativa de que a fosfoetanolamina vem sendo fornecida às pessoas há 20 anos, na minha opinião, de forma equivocada. Quem está responsável pela preparação da fosfoetanolamina nesse laboratório é o mesmo grupo da USP. Acredito que, com o nosso alerta sobre a grande quantidade de impurezas, eles podem ter reduzido isso. Mas pelo menos três componentes certamente continuam no composto. A questão é se esses três componentes presentes apresentam atividade anticâncer. Eu particularmente nunca tive muita convicção e esperança de que essa pudesse ser a cura do câncer.

Eles já apresentaram algum resultado?

Eu não tenho muitas informações sobre os testes no Icesp. No início de outubro, eles publicaram os resultados iniciais dos testes feitos com dez pacientes com câncer, que mostraram que seis deles tiveram que ser retirados do teste porque o câncer piorou. Sobre os outros quatro não temos notícias. Essas pessoas testadas só estão usando a fosfoetanolamina, nenhum outro tipo de tratamento. É um risco muito grande, uma questão muito delicada. A etapa seguinte está sendo feita com 200 pacientes com diferentes tipos de câncer. Os resultados devem ser divulgados em cerca de três meses, a não ser que eles decidam interromper antes, caso um número considerável de pacientes progrida com a doença. Se isso acontecer, eles devem encerrar o estudo.

Parece que não são os parâmetros científicos que estão orientando esse processo...

O que eu vejo é uma pressão muito grande de deputados, senadores... A ex-presidente Dilma (Rousseff) sancionou a liberação da fosfoetanolamina muito por pressão, talvez por troca de votos porque foi na mesma semana do impeachment. É incrível: o MCTI, que é do governo federal, recomendou a não aprovação, o Ministério da Saúde e a Anvisa recomendaram a não aprovação. Mas a Casa Civil recomendou a aprovação porque era um momento delicado e talvez isso pudesse ajudar. Acabou não ajudando. No Estado de São Paulo, talvez porque o governador queira ser conhecido como o pai da pílula do câncer, a fosfoetanolamina está sendo testada em seres humanos sem passar pela primeira fase de testes clínicos, que implica teste de segurança em pessoas sem a doença, para testar efeitos colaterais antes de chegar aos pacientes. Ao mesmo tempo, tem outros laboratórios que querem realizar os testes em humanos, por exemplo, em Santa Catarina. Isso tomou uma proporção muito grande pela comoção popular. Eu não sei onde vai parar, mas acho que vai ser uma grande perda de tempo e de dinheiro.

Houve participação da indústria farmacêutica em algum ponto dessa história?

Absolutamente não. Isso não tem nada a ver com a ideia de que a indústria farmacêutica não quer que se encontre a cura do câncer. Todos nós gostaríamos muito que a fosfoetanolamina realmente curasse o câncer. Eu posso ter câncer um dia, meu pai, minha mãe, minhas filhas. Mas a gente precisa trazer luz para essa história, nós somos cientistas. Eu não posso acreditar naquilo que as pessoas estão usando sem nenhum controle, sem nenhum acompanhamento. Eu acho uma irresponsabilidade muito grande. Nós não temos direito de fazer isso. Os passos têm que ser seguidos à risca, há um protocolo seguido no mundo inteiro para que um medicamento possa ser testado em humanos e ir para o mercado com segurança. É só isso que queremos: que a fosfoetanolamina siga o caminho que qualquer composto segue para chegar a ser utilizado como medicamento. Eu hoje faço juízo de valor, mas nos nossos relatórios publicados no site do MCTI não há juízo de valor.