Salvador Corrêa, coordenador executivo da Abia
Salvador Corrêa, coordenador executivo da Abia | Foto: Divulgação



A disponibilização do medicamento dolutegravir para pacientes em início de tratamento de HIV pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é considerada um avanço no tratamento antirretroviral pela Associação Brasileira Interdisciplinar de aids (Abia). A entidade acredita que a medida facilitará a adesão de pessoas recém-diagnosticadas com o vírus.
O tratamento atual é composto por três medicamentos, tenofovir, lamivudina e efavirenz, mas o efavirenz provoca uma série de efeitos colaterais e, por isso, uma alta incidência de abandono do tratamento. O dolutegravir vem substituí-lo.

Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 1980 e julho de 2015 o País registrou 798.366 casos de aids. No período entre 2010 e 2014, foram confirmados 40,6 mil casos em média por ano. Inicialmente, o novo medicamento será ofertado no SUS a todos os pacientes que estão começando o tratamento e também aos pacientes que apresentam resistência aos antirretrovirais mais antigos. A expectativa é que em 2017 cerca de 100 mil pacientes iniciem o uso do novo remédio.

De acordo com o coordenador executivo da Abia, Salvador Corrêa, a disponibilização do medicamento representa um avanço na política de enfrentamento do HIV/aids, mas não é suficiente para colocar o Brasil novamente no patamar de referência internacional que o País ocupou até meados da década passada. Os últimos dados da Organização das Nações Unidas (ONU) colocam o Brasil na triste liderança de novas infecções, de mortalidade e transmissão vertical (de mãe para filho) na América Latina. Na opinião de Corrêa, o Brasil falhou na prevenção e tratamento, o que fez com que a epidemia avançasse. Ele defende que é preciso resgatar a capacidade de incorporar os direitos humanos no centro da política de enfrentamento da epidemia.

Fundada em 1987, pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e outros ativistas, a Abia atua na mobilização da sociedade para o enfrentamento da epidemia de HIV e aids no Brasil, priorizando o acesso ao tratamento, assistência e a defesa dos direitos humanos das pessoas com o vírus.

O que a disponibilização do dolutegravir pelo SUS representa para o tratamento da aids no Brasil?
É uma evolução no tratamento antirretroviral. Hoje, a pessoa que se descobre com HIV inicia o tratamento com três medicações, tenofovir, lamivudina e o efavirenz. O efavirenz atua no sistema nervoso central e algumas pessoas têm várias situações de efeitos colaterais, como insônia, tristeza muito grande, cansaço, sonhos coloridos e pesadelos. As pessoas acabavam descobrindo a sorologia e iniciavam o tratamento com uma medicação que, por vezes, potencializava situações que não eram tão boas de serem vividas. Não era aconselhado o uso da medicação por pacientes com transtornos mentais graves. É uma medicação muito difícil de ter adesão. Sabemos hoje que o tratamento é muito importante, por dois motivos: para garantir qualidade de vida às pessoas e o tratamento reduz a chance do vírus ser transmitido quando a carga viral fica indetectável.

Existem dados sobre o percentual de abandono do tratamento em função dos efeitos colaterais?
Não temos esses dados. A incorporação da medicação atual é consideravelmente nova. No Brasil, foi no final de 2013 e não temos grandes pesquisas sobre a desistência. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, o dolutegravir já é uma realidade há alguns anos e as pesquisas apontam que ele tem menos efeitos colaterais.

O dolutegravir foi desenvolvido recentemente?
No Brasil, ele só estava disponível como medicação de resgate, ou seja, para pacientes que já estão em situação mais avançada da doença e que necessitam de uma medicação para resgatar a sua condição de saúde. Ele era adotado para casos mais extremos. Com a incorporação, as pessoas que se descobrirem com HIV conseguirão acessar essa medicação no início do tratamento, sem passar por aquela tortura psicológica de tomar uma medicação que faz ter pesadelos e transtornos do sono em um momento que já é tão difícil.

Os efeitos colaterais do efavirenz ocorrem durante todo o tratamento ou só na fase inicial?
Eles são mais intensos nas primeiras semanas de tratamento e tendem a diminuir com o tempo. Em alguns casos, os efeitos não diminuem totalmente. Já com o dolutegravil os efeitos colaterais são bem menores. A possibilidade de adaptação é muito grande. Para as pessoas que vivem com HIV, a incorporação desse medicamento significa um grande avanço no tratamento. Principalmente pela adesão ao tratamento e também pela qualidade de vida que você acaba obtendo com a adesão à medicação de forma precoce.

O preço do dolutegravir era uma barreira para disponibilização para tratamento inicial?
Sim. Temos um histórico neste sentido muito tenso. Tempos atrás, o Brasil conseguia sustentar o tratamento antirretroviral e, de meados dos anos 2000 para cá, se começou a questionar a capacidade do governo em garantir o direito à vida das pessoas com HIV, pois se tornou insustentável pagar os valores que eram cobrados pelas indústrias farmacêuticas pelos tratamentos que estavam em vigor. Na segunda metade da última década, o governo brasileiro começou a questionar esses custos altos da medicação e chegou a fazer a licença compulsória de uma medicação, ou seja, não pagar as patentes dessa medicação, e negociar os preços. Tudo isso visando a universalidade do acesso ao tratamento e garantir o direito à vida, que é um princípio constitucional.

Hoje, todo paciente com HIV tem acesso ao tratamento gratuito?
Todo paciente com HIV ou aids tem direito a ter acesso ao tratamento no Brasil. Isso é garantido por lei. Só que quando vamos olhar na prática percebemos que existe uma série de lacunas nos serviços, na gestão desses serviços, na disponibilidade de medicações que acabam impedindo a garantia desse tratamento. Embora esteja muito claro na legislação que isso é um direito das pessoas, ao tratamento e de forma gratuita, o Brasil tem muitos problemas.

Quando você fala em lacunas, o que precisa avançar?
Temos alguns problemas que variam conforme as regiões do País, à medida que os municípios são responsáveis pela implantação dos serviços de HIV e aids. Algumas das dificuldades que encontramos é em relação aos profissionais, que muitas vezes não são treinados e capacitados para lidar com as situações e acabam estigmatizando algumas pessoas. O vírus social ainda é muito presente e acaba tendo um impacto no tratamento. Algumas medicações, por motivo de logística, não chegam nos serviços de saúde e não é incomum encontrar serviços que fazem fracionamento de medicação, entregando quantidade para uma semana ou 15 dias. Outro problema grave do SUS como um todo é não conseguir oferecer o acesso ao serviço para pessoas como quilombolas, população indígena, de comunidades distantes. Isso ainda é um problema muito grande no Brasil. É preciso pensar políticas públicas de saúde que garantam a universalidade para que todos tenham acesso. O Brasil chegou no passado a ter um programa de aids que foi referência; infelizmente, não é mais.

Por que esse retrocesso? E, com a disponibilização do dolutegravir, o País volta a ficar na vanguarda do tratamento da aids?
O Brasil havia conseguido dar uma resposta à epidemia de HIV e aids, que foi pautada nos direitos humanos e na valorização dos grupos e populações que eram mais afetados pela epidemia, no sentido de trazer essas pessoas, com suas vivências, com seus estigmas e discriminações que sofriam. Elas foram convidadas a constituir uma resposta à epidemia. Foi um momento de um diálogo muito forte e profundo. E havia um financiamento muito grande para que as pessoas pudessem inovar em termos de pensar respostas para a epidemia. Perdeu-se a capacidade de dialogar com a sociedade sobre os caminhos e possibilidades para dar essa resposta. Isso acabou fazendo com que falhasse a prevenção. Quando a prevenção e o tratamento falham, a epidemia cresce. Os últimos relatórios da ONU (Organização das Nações Unidas) apontam exatamente isso. O Brasil lidera, em toda a América Latina, em novas infecções, mortalidade, transmissão vertical. Realmente, fizemos um caminho inverso. Essa medicação é um grande avanço na política à resposta de HIV/aids. Mas não é suficiente para colocar o Brasil novamente no patamar de referência internacional.

Esse retrocesso teve influencia da instabilidade política por qual passa o País?
Sem sombra de dúvidas. Essa questão atinge a resposta à epidemia de HIV/aids. Percebemos que a instabilidade política vem acompanhada de forças conservadoras, que se tornam grandes muros na resposta à epidemia no momento que se torna difícil falar de prevenção dentro da lógica do prazer. Sabemos que a principal via de transmissão é sexual. Como trabalhar prevenção se não conseguimos falar abertamente de sexo? E garantir que as pessoas conheçam as formas de prevenção, a camisinha e outras formas disponíveis, se não podemos falar sobre isso? Não podemos fazer um franco debate sobre isso em todos os espaços sociais? Quando as forças conservadoras ganham mais força na política, se tornam um grande problema. Nos últimos anos, vimos uma série de retrocessos.

O que é preciso para o País voltar a ser referência?
É preciso resgatar a capacidade de incorporar os direitos humanos no centro da política. O Betinho, nosso fundador, acreditava na capacidade e importância dos direitos humanos como um caminho para o enfrentamento do HIV/aids. Ainda no começo da década de 1990, ele falava que a cura da aids já existia e que estava dentro da gente. Que seria a solidariedade. Precisamos resgatar a importância da solidariedade, aprender a se colocar no lugar do outro, superar os nossos medos e estigmas de discriminação.

A Unaids (programa das Nações Unidas sobre HIV/aids) defende a meta do fim da epidemia até 2030. Como a Abia encara essa meta?
Acreditamos que é muito ousado falar em fim de epidemia em 2030, justamente porque não percebemos um esforço potencial para esse enfrentamento. Para que consigamos alcançar em 2030 essa meta, precisamos garantir os direitos básicos das pessoas, como acesso à saúde, fortalecer o SUS, reduzir a desigualdade social. Hoje, o acesso à informação, à educação sexual é desigual. As desigualdades em geral se sobrepõem e quando isso acontece é muito mais difícil do vírus ser combatido. Não é apenas um problema de saúde pública.

O dolutegravir é o que há de mais moderno atualmente no tratamento do HIV/aids?
Existem várias pesquisas acontecendo. Se por um lado há um vírus ideológico, que é o preconceito e a discriminação, que ainda precisamos de esforços para combater, por outro lado temos conseguido grandes avanços em relação ao vírus biológico. Essa medicação é bem recente e é uma das mais modernas no tratamento do HIV. O Brasil deu um passo significativo de acompanhar o que há de mais moderno em termos de pesquisa. Mas ainda são necessários muitos esforços. Por exemplo, ainda não conseguimos incorporar a prep (profilaxia pré-exposição), que já é realidade nos Estados Unidos, na África do Sul, na Austrália e alguns países europeus. A prep é o uso da medicação antes do contato com o vírus. Ela garante 99% de chance de prevenir. É comparável à camisinha.

Ela é destinada a uma determinada população de risco?
Exatamente, para populações específicas. Como tivemos uma resposta eficaz no passado, conseguimos fazer com que a epidemia ficasse concentrada em alguns grupos da população e não generalizada como em alguns países da África. Defendemos uma nova forma de prevenção. O uso da camisinha é importante, ela tem que estar sempre disponível, pois protege, além do HIV, de outras doenças sexualmente transmissíveis e evita a gravidez. Mas defendemos que para combater o HIV/aids as pessoas têm que ter o direito de escolher, se informar e de decidir sobre como se prevenir, como, por exemplo, o tratamento, a profilaxia pré e pós-exposição, algumas medidas comportamentais que reduzem a chance de transmissão, como a circuncisão. Ela é adotada como política pública de prevenção em alguns países. Defendemos que a pessoa tenha acesso a todas essas informações para que possa escolher a forma de prevenção que funciona para ela. Nós falhamos como movimento social, como governo, como sociedade na prevenção porque centralizamos apenas na camisinha e as pessoas não usam.

Quais políticas públicas a entidade entende que deveriam ser implantadas no Brasil?
A Abia defende a incorporação imediata da profilaxia pré-exposição. Não podemos ficar neste atraso. Também defendemos o resgate dos direitos humanos no centro da resposta da epidemia, a redução do pagamento das patentes pelo governo federal.