O recente episódio envolvendo o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Eduardo Siqueira, ressaltou mais uma vez o fenômeno da “superioridade epistemológica”, ainda muito persistente na cultura brasileira. Paira no ar a ideia de que o conhecimento é fator preponderante para o escalonamento de uma suposta hierarquia social. Ao ligar para o Secretário de Segurança de Santos, Sergio Del Bel, o desembargador agiu com intimidação e impetrou humilhação ao guarda municipal, valendo-se de suposta estatura cognitiva. “Eu estou aqui com um analfabeto, um PM seu aqui”. Del Bel não corroborou a carteirada como negou qualquer relação de amizade com o desembargador. O guarda municipal, em entrevista concedida, afirmou que sentiu-se profundamente ofendido e humilhado ao ser chamado de analfabeto. A tática perversa daqueles que se sentem superiores é diminuir o outro, fazendo crer que exista uma relação assimétrica.

Um país que luta há décadas para erradicar o analfabetismo, não pode consentir que a educação superior se preste a esse tipo de atitude e desserviço, tal como protagonizado pelo desembargador. Sua postura deplorável transmite a ideia de que o estudo e o conhecimento constituem armas para infringir regras e abater reputações.

Essas atitudes, infelizmente, não acontecem apenas nos estratos mais altos da sociedade. É um ranço que também se colhe entre aqueles que buscam o estudo como fator de ascensão social e de licença para aviltar os que ficaram para trás no processo escolar.

Um senhora, viúva, arrimo de família, lutou durante toda a sua vida para driblar a pobreza e oferecer as condições necessárias para sua filha estudar. Sua vitória foi alcançada quando a filha concluiu o curso de licenciatura e tornou-se professora. Amparada por um diploma de ensino superior, a moça considerava-se tão cheia de conhecimento e tão acima da média, que certo dia disse à sua mãe que não lavaria mais as louças em casa, pois não havia estudando para se prestar a esse tipo de serviço. A mãe, cabisbaixa, percebeu que o estudo da filha não havia produzido o efeito esperado. Educação superior não é acepção de superioridade nem de boa educação. A moça obteve um diploma, não educação.

O ensino formal não torna ninguém melhor que os outros, mas pode promover uma sociedade a ter atitudes e comportamentos que alberguem o respeito e a reciprocidade, permitindo que todos sintam-se incluídos e reconhecidos.

A educação, no sentido lato, é fator decisivo para promover o desenvolvimento econômico e diminuir a desigualdade social de um país. É um direito público subjetivo que confere ao cidadão condições de exigir do Estado o seu provimento. Falta-nos muito a conquistar, considerando que a educação nem sempre teve primazia na agenda política brasileira. Capítulo recente foi a aprovação do Fundeb na Câmara dos Deputados, a despeito de um Ministério da Educação inerte e distante do debate.

Além de reprovar condutas desastrosas como a do desembargador de São Paulo, é imprescindível também combater um tipo de comportamento reverso que tem ganhado espaço na sociedade, uma espécie de apologia à ignorância como condição de status e de superioridade axiológica. Negacionistas e terraplanistas são exemplos de uma fauna que se levanta contra a ciência. Almejam status de superioridade naquilo que professam de forma reversa, seja esvaziando o conhecimento, negando a lógica e a empiria ou simplesmente desconstruindo o oponente.

Que a educação não seja instrumentalizada para gerar um apartheid social, a ponto de qualquer um sentir-se legitimado a ligar para o Del Bel, e tampouco negada sob o pretexto de igualar a todos na vala comum da estupidez, a ponto de estimular a bazófia de alguns a sair por aí dizendo: “E daí?”.

Clodomiro José Bannwart Júnior é professor de Ética e Filosofia Política na Universidade Estadual de Londrina