Que tipo de sociedade queremos construir?
Fica claro que o problema não é falta de recursos, mas a escandalosa distribuição
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segunda-feira, 09 de setembro de 2024
Fica claro que o problema não é falta de recursos, mas a escandalosa distribuição
Luís Miguel Luzio dos Santos
Enrique Dussel, um dos mais importantes filósofos latino-americanos, entende que a vida é o primeiro direito humano e como tal, precisamos de parcialidades na sociedade, pois só privilegiando os historicamente prejudicados, poderemos garantir dignidade universal. Prevalece a “ética” das minorias hegemônicas, em que se promove um modelo de desenvolvimento que prioriza os já privilegiados e obstaculiza a ascensão das populações mais precarizadas. Parece que os grupos mais abastados não têm consciência do lugar privilegiado em que se encontram, como se se tratasse de superioridade inata e hereditária. Dussel defende uma ética de afirmação da vida com base no interesse das vítimas, priorizando-se a libertação dos oprimidos historicamente rebaixados a subespécie.
A premissa que defende que os problemas sociais só serão resolvidos por meio do crescimento produtivo é matematicamente inviável. O mundo possui 8 bilhões de habitantes e um PIB global de US$100 bilhões, o que dá uma renda per capita de quase US$ 13.000/ano, ou seja, US$ 1.083/mês. Ao se converter em moeda nacional, tem-se R$ 6.000 por pessoa, o que equivale a R$ 24.000 mensais numa família de 4 pessoas. Fica claro que o problema não é falta de recursos, mas a escandalosa distribuição.
Toda a riqueza é fruto de trabalho coletivo inter e intrageracional, resultado de conhecimentos, inovações e infraestruturas acumuladas por gerações, além do esforço complementar de milhões de trabalhadores ao redor do mundo. Qualquer empreendimento só se viabiliza com consumidores ativos, fornecedores competentes, centros de pesquisa e inovação, e governos que garantam infraestrutura, direitos fundamentais e oportunidades para todos. No entanto, o esforço coletivo é sequestrado por alguns poucos, que revestidos de superpoderes, se apropriam do que foi produzido em conjunto.
Essa apropriação indébita fica clara quando se atesta que, entre 1978 e 2020, o ganho médio dos executivos estadunidenses cresceu 1.322%, enquanto o de um operário avançou apenas 18%. Na década de 1970 a diferença média de rendimentos entre o operário e o CEO da mesma empresa era de 20 vezes, atualmente supera 350 vezes. Trata-se de uma polarização de rendimentos que não encontra justificativa na competência superior dos executivos atuais em relação aos de 1970 e muito menos à incapacidade produtiva dos operários no mesmo período.
Essa realidade distópica tem várias explicações, entre elas a redução sistemática do poder dos trabalhadores em todo o mundo, que viram seus postos de trabalho transferidos para nações com baixas regulamentações trabalhistas. A concentração extrema de riqueza que se transformou em poder político, privilegiando o capital em detrimento do trabalho. Também, a introdução acelerada de novas tecnologias reduziram a necessidade de mão de obra, principalmente em atividades operacionais e de menor complexidade, exatamente as que concentravam maior contingente de trabalhadores, reduzindo remunerações e poder de negociação.
O crescimento da riqueza, por si só, não garante a melhoria das condições dos mais pobres e nem seria viável considerando os limites de recursos planetários. Só mudanças institucionais profundas, ou seja, alteração nas regras do jogo, poderão fazer com que os recursos sejam distribuídos e alcancem os mais pobres.
Qualquer argumento sobre distribuição de renda, erradicação da pobreza e justiça social precisa ser precedido pela questão: Qual o tipo de sociedade se quer viabilizar? Enquanto para alguns, maior igualdade é um ideal desejável e que deve ser perseguido, para outros, isso seria o inferno em vida, considerando que o que os anima é serem vistos como superiores e os demais perdedores.
Luís Miguel Luzio dos Santos, professor de socioeconomia da Universidade Estadual de Londrina.
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