Assisto (assistimos todos) o que passa no Rio Grande do Sul. A chuva grandiosa que caiu sobre o Guaíba (e vários afluentes) venceu a contenção histórica que a cheia lendária de 1941 encaminhou e, sem piedade, avançou sobre Porto Alegre e por algumas centenas de municípios do Rio Grande, desenhando um cenário caótico de destruição, antes nunca visto por aqui.

As mortes até então contabilizadas passam de 150 e há muitas pessoas desaparecidas.

Em meio a isso tudo o país se põe a participar de formas e maneiras distintas do drama gaudério. Enquanto um contingente ajuda no transporte de ilhados, salvando vidas reféns das águas, um outro agrupamento se divide abrigando os desabrigados e ofertando-lhes comida – no ponto proliferam as cozinhas comunitárias, matando fome e salvando vidas.

Há muito esforço nesse campo primevo e o suor que escorre dos valorosos e múltiplos voluntários mostra um Brasil possível, onde o melhor segue sendo o brasileiro, como acreditou Câmara Cascudo.

Há, todavia, uma zona cinzenta, onde dormitam lacaios da indústria da mentira (aqui apelidada fake news, em um estrangeirismo que já me incomoda) que campeia pelas redes sociais, então tomadas de facínoras que não compadecem da dor alheia, criando a tragédia dentro da tragédia.

Essa gente, desligada de empatia e inimiga da ciência, levanta mentiras sobre o evento climático, desprezando vidas ceifadas ao tempo em que criam teses empíricas, desligadas da realidade, mitigando as responsabilidades (sub e adjacentes) ao quanto choveu e o quanto não funcionou a contenção do Guaíba, da conta das intervenções cada vez mais severas do homem na natureza.

Para negacionistas, a quantidade exagerada de água que precipitou, bem assim o sistema de contenção que foi vencido, não são senão frutos do acaso, impulsionado por um faniquito qualquer de mãe natureza. Assim, as muitas vidas perdidas não seriam, senão, efeito colateral de um planeta indômito...

Não podemos aceitar essa desgraça emocional. Quer pela mentira que a catapulta, quer na conta da efeméride circunstancial de sua conjectura. Assim e então, há que se estabelecer uma premissa da qual não possamos desligar as muitas conclusões que os terraplanistas estão construindo: o que passou no Rio Grande do Sul não é fruto do acaso e sim da teima intervencionista do homem na natureza.

Não podemos seguir normalizando a anomalia do desmatamento desenfreado que o grande capital impõe. Não dá mais para continuar poluindo e matando rios, peixes, mares e afluentes, por onde secularmente escoou a vida, estabelecendo uma equação de morte sobre a maré do interesse ditado pelo neoliberalismo – que segue desconhecendo de povos originários a ribeirinhos, esmagando no caminho as demais minorias.

Exagero meu, dirão alguns incautos com preguiça de ler e que, sem qualquer conhecimento, seguem palpitando sobre o que desconhecem.

Para essa gente de terraplana lembro que a quantidade absurda de água que choveu no Pampa já está relacionada ao desmatamento desenfreado que alimenta o grande capital e isso não é fruto de uma vontade minha e sim da ciência.

Aliás e no ponto, lembro que apenas a ciência pode nos dar alguma segurança sobre o que passou e seguirá a passar (olha a boiada passando!), naquilo que os reiterados alertas climáticos ignorados pelo neoliberalismo aportaram na estrada de nosso desespero e já não podemos seguir por este caminho.

Leis ambientais? Para quê? Isso é cousa de comunista – diria o Olavo que não é o Bilac. Pensando assim, o governador dos gaúchos desmontou a legislação ambiental do estado, deixando fauna e flora expostos ao grande capital, no que foi seguido pelo prefeito de Porto Alegre, no tocante a conservação e manutenção dos anteparos protetivos que, desde a cheia de 1941, estão instalados às margens do Guaíba.

O desmonte da legislação ambiental e o descaso preventivo na manutenção do sistema de contenção do Guaíba explicam, em enorme medida, o alcance da tragédia, possibilitando a identificação dos responsáveis políticos pela negação da natureza nas considerações que o grande capital demanda.

Noves fora, há um jogo a ser jogado e a peleia tem que mudar o rumo das coisas, naquilo que as minorias não podem seguir sendo a vítima pontual dos interesses subjacentes ao interesse do capital.

Se, um dia, a demanda civilizatória reclamou a união dos proletários do mundo, hoje essa conjuntura faz ainda mais sentido, com especial ênfase na demonstração da equação explorativa (das gentes e da natureza) pelo viés da grita da natureza.

Ainda há tempo, mas temos que reverter o modelo explorativo. A natureza e as minorias não podem seguir desconsideradas.

Tristes e arrasados trópicos. Saudade Pai!

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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