É perceptível, nos últimos dias, um claro sentimento de orfandade! E não somente por parte dos católicos. Durante mais de uma década, nos habituamos a ver em Roma alguém que nos representava, que nos entendia, que nos aconselhava e nos justificava. Era um papa que atendia pelo nome de Francisco para os “íntimos”, ou seja, para todos! O dia 21 de abril amanheceu cinzento, com a timidez de alguns raios solares penetrando as nuvens. Lá longe, no Vaticano, às 7.35 h um homem vestido de branco adentrava os portões da eternidade. O papa que veio “do fim do mundo” despedia-se deste mundo surdo e insano a quem tantas vezes quis falar. De fato, Francisco deixou para trás uma humanidade ferida e uma “casa comum” mais insegura e perigosa para se viver, do que encontrou em 2013. É uma lástima, mas é a pura verdade.

Se se dizia que em João XXIII um cristão virou papa, é com propriedade que afirmamos que em Francisco um homem se fez papa! A humanidade se revia em Francisco, porque nele o papado desceu ao chão da fábrica, às periferias existenciais e as compreendeu. Ele, mais do que nenhum outro, soube traduzir o Evangelho em linguagem “nossa”, na língua universal entendível pelos que acreditam e sonham com um mundo diferente. Pelos humildes que se identificam com os ideais de Jesus Cristo, mesmo que formalmente não pertençam à Igreja. Eis o humanismo de Francisco!

Leia mais:

Líderes católicos de Londrina e região lamentam morte do papa

Beira as raias do impossível traduzir a riqueza do legado de Francisco. Coube muita vida em 12 anos de pontificado! A escolha do seu nome (diz ele que foi sugestão do nosso cardeal dom Claudio Hummes) traçou logo de início o seu plano de vida no Vaticano. Francisco de Assis, morto há 800 anos, é sem dúvida a sua grande inspiração. O papa argentino, apesar de jesuíta, é franciscano por excelência! Logo de cara, manifestou uma grande preocupação com o meio ambiente; não se tratava de simples ecologia e sim de teologia! O papa refletia que o ser humano não tem o direito divino de destruir, mas de cuidar! As obras da criação são também obras de Deus e “Ele viu que tudo era muito bom”! Nisso ele foi inédito e oportuno. Sua encíclica Laudato Si será inesquecível. No entanto, o mundo das mudanças climáticas e dos fenômenos extremos parece surdo!

Francisco captou com uma sensibilidade epidérmica extraordinária a questão dos imigrantes e refugiados. Não se conformava que países e continentes exportadores de armas, com baixíssimos índices de natalidade, se negassem a receber essa gente que fugia precisamente de guerras, pobreza e clima inóspito. Trata-se de uma imoralidade, segundo Francisco! Nessa linha, não hesitou em escrever uma carta contundente aos bispos americanos, logo após Trump assinar os seus primeiros decretos de expulsão de imigrantes. Foi tão peremptório, que o mesmo Trump o convidou a “cuidar das questões do Vaticano”! A situação se amenizou, exatamente na visita do vice presidente JD Vance, que teria sido a última audiência de Francisco!

Francisco ultrapassou inúmeras barreiras. É um papa “católico” no sentido pleno do termo! Cristãos, judeus, muçulmanos, “todos todos”, como repetiu em Lisboa, na Jornada Mundial da Juventude. Ninguém fica de fora, com Francisco. A Eucaristia, não é prêmio para os “bons”, mas remédio para quem está a caminho. A Igreja não é uma “alfândega da fé”, mas tem que reproduzir a misericórdia do Senhor, sendo “boa samaritana”. Ninguém pode julgar ninguém. Se é homossexual ou não, é uma questão tremendamente secundária e ínfima para Francisco. Os líderes católicos devem andar “na frente do rebanho, no meio e atrás, porque o rebanho também sabe onde quer chegar”. Há novidade no ar! Há ventos de mudança que não podem ser dominados facilmente! Há uma Igreja que irrompe dentro das estruturas da própria Igreja e que ninguém pode segurar.

Partiu Francisco. Sabíamos que esse dia chegaria. Partiu na Páscoa. Não é um detalhe para os crentes! Despediu-se solenemente, na mesma janela onde se anunciou pela primeira vez anos atrás. E foi assim que o vimos. Dizendo um até logo, enquanto sorridente caminhava de mãos dadas com Aquele a quem serviu com esmero dedicação e alegria. Esse é o “nosso Francisco”. Mostrou-nos um Deus tão próximo, que até o podíamos tocar!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

mockup