Maria Lucia Victor Barbosa
Cada vez mais os rótulos de direita e esquerda, aplicados a ideologias políticas, perdem o sentido. Na Europa, governantes sociais-democratas (chamados de socialistas para confusão geral com os antigos comunistas) comportam-se como liberais, enquanto muitos liberais ou capitalistas se voltam para questões sociais no sentido de distribuir mais justiça social.
Quanto aos partidos políticos europeus, dada a evolução sócio-econômica daquelas sociedades, que acarretou o aburguesamento da classe operária européia, que melhorou seus salários, condições de trabalho e nível de vida, há muito se converteram no tipo de partido chamado ‘‘partido agarra-tudo’’. Este modelo não corresponde mais nem ao ‘‘partido de quadros’’, constituído no passado pelas elites e encarnado pelos notáveis, nem ao ‘‘partido de massas’’, inventado pelos movimentos socialistas no final do século XIX e começo do século XX, e consequência direta da substituição do sufrágio restrito pelo sufrágio universal.
Tais ‘‘partidos agarra-tudo’’ podem se nomear tanto de direita quanto de esquerda que dá na mesma, pois nesses verdadeiros ajuntamentos as características são as seguintes: são mais voltados para seus eleitores do que para seus filiados; não representam determinada classe social, mas são interclassistas; a essa diversidade social acrescentam a variedade ideológica; não possuem nenhum dogma ou programa demasiado preciso, a fim de facilitar todas as interpretações, sendo seus temas por isso bastante vagos.
Esta descrição dos ‘‘partidos de massa’’, que dizem respeito à realidade européia pode, contudo, parecer ao leitor mais atento um retrato falado dos atuais partidos políticos latino-americanos, incluindo, naturalmente, os partidos brasileiros sem exceções. Na América Latina, tomemos como exemplo do que se afirma, o Chile, onde estará amanhã se realizando o segundo turno das eleições presidenciais. Naquele país se defrontam dois candidatos: o da ‘‘Alianza por Chile’’, Joaquín Lavin, considerado de direita e representante da elite industrial; e o da ‘‘Concertación’’, Ricardo Lagos, apoiado por uma coalizão de partidos chamados de centro-esquerda. Serão, porém, os candidatos que se acusam mutuamente de fraude eleitoral, tão diferentes entre si no tocante às respectivas ideologias, apesar de Lagos fazer questão de afirmar que é socialista?
Conforme o jornalista Eduardo Porter, em que pese a gritaria empresarial, que parece um toque de clarim na frente da batalha de luta de classes, as propostas de Lagos e Lavín têm mais semelhanças do que diferenças. Lavín promete criar 1 milhão de empregos; Lagos, 700 mil. Lavín anuncia um gasto público de US$ 8,1 bilhões; Lagos, US$ 8,3 bilhões. E ambos prometem políticas que permitam recuperar o crescimento econômico de 7% ao ano.
A proximidade nas propostas dos dois candidatos é reconhecida inclusive por quem está em lados opostos: ‘‘Apesar de não serem iguais, os dois programas são parecidos’’, diz José de Gregório, professor de economia na Universidade do Chile e assessor econômico na campanha da ‘‘Concertación’’. ‘‘Não há diferenças como céu e inferno, os objetivos finais são muito parecidos’’, concorda Rodrigo Vergara, assessor econômico na campanha de Lavín. ‘‘O Lagos de hoje não é o mesmo Lagos dos anos 60, diz Suzan Purcell, vice-presidente do Conselho para as Américas, organização empresarial dedicada a promover a integração econômica. Portanto, a vitória tanto de um quanto de outro, não fará grande diferença para o destino do Chile.
Evidentemente, que no fenômeno da aproximação entre esquerda e direita pesou também a dissolução do Império soviético, e ex-comunistas tiveram que rever suas posições político-ideológicas para não continuarem incidindo no fracasso, adaptando-se, então, como puderam, aos ventos liberais.
Entretanto, nem todo político que se diz de esquerda acordou para a realidade em termos de perceber as transformações havidas. Isso é comum na América Latina, ressalvando-se que por essas plagas a ‘‘esquerda anacrônica’’, que prega o intervencionismo estatal e o fechamento da economia, tem uma característica particular (que, aliás, frequenta também bastante os meios da chamada direita): o caudilhismo com seu profundo acento autoritário, seu xenofobismo doentio e a larga prática do nepotismo.
Entre os ‘‘anacrônicos’’ pode-se citar, por exemplo: Tabaré Vazquez, que perdeu recentemente as eleições presidenciais no Uruguai; Cuauhtémoc Cárdenas, do PRD Mexicano; Hugo Chávez, presidente da Venezuela; Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Leonel Brizola (PDT) no Brasil.
Sobre Lula, seria justo observar que em determinados momentos ele deixa a retórica da ‘‘esquerda anacrônica’’ para na prática tentar acordos com aqueles espécimes que os ‘‘nebulosos socialistas’’ denominam de direita, e afina o discurso e os projetos (um deles visava acabar com a pobreza) com figuras como a do senador Antônio Carlos Magalhães.
Entrementes, o deputado federal do PT José Genoino, esquerdista para ninguém botar defeito, brada aos quatro cantos: ‘‘Não acredito mais no socialismo como um sistema econômico que deva ser implantado’’. Enquanto isso, Miro Teixeira, deputado federal do PDT de Brizola, afirma: ‘‘O povo está certo em não se identificar com nenhum partido, especialmente com os de esquerda. A esquerda é caótica, assembleísta. Confunde democracia com democratismo. Não tem um líder com coragem de expor suas idéias. Não sabe para onde ir’’.
Desse modo, quando a candidata do PT à Prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, rotula seus adversários de ‘‘direitinha’’ e ‘‘direitaça’’, está apenas usando rótulos inúteis, pois os ‘‘produtos’’ perderam a validade. E assim, seria válido perguntar se ela, que leva uma vida extremamente burguesa e é casada com um Matarazzo quatrocentão, por acaso se sente de fato uma ‘‘esquerdinha’’. Ou seria ou uma ‘‘esquerdaça’’?