Os diversos ângulos da democracia
Maria Lucia Victor Barbosa
Certamente, menos por seu conteúdo e mais pelo seu título (‘‘MST, o inimigo nº 1 da democracia’’), meu último artigo chamou bastante atenção dos leitores. No confidencial correio eletrônico, de forma solidária, identificada e democrática no sentido da maioria, recebi o apoio dos que pensam como eu, o que se constitui no imprescindível estímulo para que possa continuar meu teimoso exercício de liberdade de expressão, quer dizer, de democracia.
Publicamente, ou seja, via imprensa, as opiniões se dividiram. Desse modo, agradeço aos senhores Luiz Gastão Pinto Júnior, Walter Marinho Falcão e Arnaldo Coelho do Amaral Filho pela compreensão. Fico devendo esclarecimentos a Eloisa Lima e uma explicação mais acadêmica a Wellington Amaral Sampaio que me pediu para focalizar a democracia sobre diversos ângulos. Quanto ao estudante de Ciências Sociais Rodrigo Antunes da Silva, ele parece não ter me entendido ou não ter querido me entender. Imagino-o jovem, pois sua retórica peca por imaturidade e excesso de intoxicação ideológica, o que é compreensível na juventude. Isso, porém, não o impedirá de descortinar mais tarde outros horizontes mentais. Assim, talvez, ele possa vir a polemizar com outros contendores intelectuais baseado em linguagem e argumentos diferenciados dos de agora. Isso lhe permitirá alçar-se da rasura de um pires a uma maior profundidade sociológica, capaz de extrapolar os jargões e cacoetes do marxismo vulgar e de levar à superação da ‘‘doença infantil do esquerdismo’’.
Com relação à análise da democracia sobre seus vários ângulos, volvo então a eminentes pensadores políticos como Norberto Bobbio, Roger-Gérard Schwartzenberg e outros – em que pese ser impossível abranger o tema de maneira completa num artigo dessa dimensão – para sintetizar o tema: três são as tradições da teoria da democracia: A) A teoria clássica, com Aristóteles e Platão; B) A teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania popular; C) A teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel e nascida com o Estado Moderno.
Como se observa, o problema da democracia é muito antigo, e sempre suscitou polêmicas acaloradas e desentendimentos sem fim. Isso aparece na narração feita por Heródoto a propósito da discussão sobre a forma de governo da Pérsia, travada entre Otane, Megabizo e Dario. Este era defensor da monarquia, Megazibo da aristocracia e Otane do governo popular ou isonomia, termo do grego antigo que significa igualdade perante a lei e que é até hoje considerada ponto fundamental da democracia.
Disse Otane: ‘‘Como poderia a monarquia ser coisa perfeita, se lhe é lícito fazer tudo o que deseja sem o dever de prestar contas?’’ Ao que lhe responderam Megazibo e Dario, referindo-se ao governo democrático: ‘‘Não há coisa mais estulta e insolente que uma multidão incapaz. Como pode governar bem aquele que não recebeu instrução nem conheceu nada de bom e conveniente e que desequilibra os negócios públicos intrometendo-se sem discernimento, semelhante a uma corrente caudalosa?’’
Platão, na República, não é muito complacente com a democracia da qual diz: ‘‘Nasce quando os pobres, após haverem conquistado a vitória, matam alguns adversários, mandam outros para o exílio e dividem com os remanescentes, em condições paritárias, o governo e os cargos públicos, sendo estes determinados, na maioria das vezes, pelo sorteio e caracterizados pela licença’’.
Aristóteles define democracia como ‘‘governo da maioria’’ na sua forma pura, e como ‘‘governo da multidão’’ na impura. Esta última significa o domínio dos demagogos, quer dizer, a forma corrupta de governo popular.
Conforme Bobbio, os juristas medievais elaboraram a teoria da soberania popular com base em algumas passagens do Digesto, tiradas principalmente de Ulpiano. Disto surge a célebre afirmação: ‘‘Quod principi placuit, legis habet vigorem (‘‘O príncipe tem autoridade porque o povo lha deu’’).
Entre os chamados pais da democracia moderna, os escritores dos séculos XVII e XVIII, vamos encontrar diferenças interessantes. Par Locke, por exemplo, o Poder Legislativo deveria ser exercido por representantes, enquanto que para Rousseau devia ser assumido diretamente pelos cidadãos.
Locke será referendando pelos pensadores liberais de Constant e Tocqueville a Stuart Mill, que defendem a democracia representativa. Já os socialistas falam numa democracia direta, e Lenin, inspirado pelas reflexões de Marx sobre a comuna de Paris, enunciou a democracia dos conselhos. A democracia seria econômica e não política, para que os cidadãos viessem a controlar a produção.
Numa perspectiva científica e não ideológica, Ludwig Gumplowicz, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto demonstraram de forma realística que ‘‘a soberania popular é um ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá corresponder à realidade de um fato, porque em qualquer regime político, qualquer que seja a forma política sob a qual os governantes e seus ideólogos o representem, é sempre uma minoria de pessoas (classe política segundo Mosca) que detém o poder efetivo’’.
Essa teoria se confirmou, inclusive, na ‘‘democracia econômica’’ da ex-União Soviética onde se verificou, entre outros, os seguintes aspectos: abusos do centralismo democrático do Partido (que impediram toda e qualquer iniciativa, toda e qualquer participação autêntica em nível de base); o pesado monopólio do Partido na vida política, econômica, social e intelectual; as ofensas às liberdades. E esse modelo totalitário ultrapassado é o do MST, que simulando democracia agride a democracia violando direitos e liberdade alheios em nome de uma utopia ultrapassada.
Como afirmou o jornalista Luiz Weis: ‘‘Não é pouco o que falta fazer para democratizar a democracia brasileira, a fim de torná-la uma arma apontada contra as iniquidades sociais. Mas é um erro e um crime contestá-la, imaginando que a corda romperá do lado do mais forte. Se existe um penhor da igualdade, é a democracia. Com ela, pode ser que os injustiçados consigam dar a volta por cima; sem ela, melhor nem tentar’’.
- MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA é socióloga, escritora e professora universitária em Londrina
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