Em setembro do ano passado, na entrada do Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, África do Sul, conheci Giuliana, uma médica italiana que lá chegou para também conhecer o Museu do Transplante, que são os anexos e a sala de cirurgia onde foi realizado o primeiro transplante de coração do mundo, que ocorreu em dezembro de 1967.

Após o tour pelo Hospital, e já no final da tarde fomos para o V&A Waterfront, no Porto de Table Bay, aos pés da Montanha da Mesa, uma área portuária revitalizada que contempla shoppings, hotéis, mercados, dezenas de bares e restaurantes, e muito mais.

E lá, ela me perguntou sobre o novo governo do Brasil, já que na Itália eram feitas muitas críticas sobre a postura do presidente. Eu, então, fiz as minhas considerações preservando o meu país, e apenas mencionei a intolerância de muitos às críticas que se faz ao governo.

Ela, então, lembrou das histórias do período do fascismo na Itália, entre 1922 e 1945, onde a ideologia ultranacionalista e autoritária, na pessoa de Mussolini impôs, aos poucos, um regime ditatorial, excluindo qualquer oposição através do chamamento da sociedade e dos empresários para lutar e excluir qualquer pessoa, partido ou político contrário ao sistema, além, é claro, de usar a polícia e as forças armadas contra quem não o apoiasse.

Em seguida, ela me contou que a sua família era o maior exemplo de convivência pacífica e democrática, e depois de uma boa risada disse que os seus pais eram democratas e católicos fervorosos e praticantes; o irmão mais velho é comunista. O irmão do meio é ateu e socialista e ela é democrata e espírita. Eu, de pronto, perguntei: você está brincando, não é? Ela, sorrindo disse que não, que era verdade.

E como vocês convivem com essa situação surreal, eu perguntei? Ela respondeu: simplesmente, cada um respeita as opções do outro. E mais, ela disse: o meu irmão fala de comunismo perante todos nós. A gente discorda de forma articulada, responsável e respeitosa e a conversa flui normalmente. O mesmo se diga do irmão ateu e socialista e a minha, espírita e democrata, e principalmente a dos meus pais, muito católicos e também democratas.

Extremamente politizada e muito inteligente ela disse que o partido comunista italiano atualmente é híbrido, apresentando, há tempos, uma configuração dinâmica resultante de mudanças estruturais no seu objetivo, sem configurar um antagonismo, pois conserva a natureza de uma busca social horizontal e melhor para a população.

Lembrou que a China, embora seja constitucionalmente comunista, na verdade é comunista/capitalista, e citou os milhares de milionários chineses cujas finanças e patrimônios são deles, e não do governo chinês.

E falou do socialismo na Europa, onde Portugal; França; Espanha e a Itália são ou foram governados por partidos de esquerda, onde o pensamento político e econômico não é, e nunca foi a coletivização da produção, e jamais tentaram suprir a propriedade privada e as classes sociais, sendo que todos esses países convivem em harmonia, sem quaisquer problemas.

Sobre o irmão ateu ela disse que foi uma opção diante das desconformidades da igreja com o Deus que proclamam. E sobre ela ser espírita, disse que a respeitam por ser uma decisão pessoal e refletida.

Tolerância, bom senso, respeito às opiniões e as vertentes políticas e religiosas de cada um, em resumo, disse ela, é o exercício pleno da democracia.

Eu resolvi contar essa história diante dos diversos casos de amigos deixando de ser amigos; irmãos excluindo irmãos nas redes sociais; sócios se separando, tudo porque os adeptos fanáticos do presidente não admitem críticas ao seu comportamento ou ao seu modo de governar, demonstrando ser admitida uma única opção: ser bolsonarista, ao estilo próprio de Mussolini. A democracia, para eles, não existe, e não escondem as suas intolerâncias e o desrespeito ao pensamento divergente.

Com as notícias de convocação da população para se opor ao Congresso Nacional e ao STF, instituições democráticas devidamente constituídas, peço que reflitam porque uma ação irracional e ordenada poderá causar ao país uma catástrofe só visível e sentida depois de concretizada, quando, então, será tarde.

Almir Sudan (advogado e economista) - Londrina