A Argentina mais uma vez é indicada ao Oscar por uma obra-prima. O filme “Argentina, 1985” conta a história do esforço da sociedade civil em julgar militares que exerceram o poder durante o duro período ditatorial do país, entre 1976 e 1983. O saldo dos anos sob o comando militar é assustador. Calcula-se que mais de 30 mil cidadãos morreram e desapareceram nos porões da ditadura (além de 500 bebês), deixando marcas profundas na sociedade argentina. Uma violência que foi exposta durante o julgamento, ajudando o país a ter ciência que tal brutalidade jamais poderia voltar a acontecer e que os mandantes desses crimes bárbaros deveriam ser punidos.

A violência cometida de forma arbitrária pelos agentes que representavam o Estado argentino é um exemplo clássico de violação de Direitos Humanos. Por ser detentor do monopólio do uso da força, o Estado, por intermédio de qualquer governo, precisa ter limites claros de atuação, usar suas atribuições sempre dentro da lei e dos parâmetros constitucionais, sob pena de cometer arbitrariedades contra o cidadão. Este direito de defesa do indivíduo contra o poder Estado é o que se chama de Direitos Humanos, principal prerrogativa violada por ditaduras e prática comum da ditadura argentina por intermédio de perseguições, desaparecimentos, sequestros, prisões, torturas e mortes.

Para uma sociedade fazer as pazes com o seu presente, precisa conhecer o passado. Foi isso que os argentinos fizeram em 1985, julgando em um tribunal civil, sob o manto constitucional, as violações de Direitos Humanos cometidas pelos militares durante o seu exercício de poder ditatorial. Assim como em Nuremberg, militares não reconheceram a legitimidade do tribunal, porém, assim como na Alemanha, seus crimes foram expostos. Por fim, tiveram direito a um julgamento, aquilo que negaram para todas as vítimas que pereceram em suas mãos.

Enquanto a Argentina conheceu os horrores da ditadura por meio de 839 testemunhas durante 530 horas de audiência, onde falaram parentes de desaparecidos, especialistas, testemunhas de defesa e muitos sequestrados e torturados que sobreviveram, o Brasil infelizmente optou pelo caminho oposto. Deixaram livres de qualquer julgamento os criminosos fardados que sequestraram, torturaram e assassinaram no comando do país.

Foi somente no governo Fernando Henrique que se instituiu a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos encarregada de investigar casos de vítimas fatais que haviam sido motivados politicamente. E em 2011, no governo Dilma Rousseff, estabeleceu-se a Comissão Nacional da Verdade para investigar violações de Direitos Humanos ocorridos durante a ditadura militar. O primeiro processo começou em 2012 e terminou em 2021, 36 anos após o fim da ditadura. Uma impunidade que cega nossa sociedade.

Se assim como os argentinos, o Brasil tivesse julgado seus militares acusados de crimes contra a população brasileira que prometeram proteger, talvez nossa história fosse outra e jamais tivéssemos pessoas pedindo o fim da democracia diante de quartéis, rogando por intervenção militar ou agindo para provocar um golpe de Estado. A Argentina guarda também seus traumas, mas neste caso soube lidar melhor com as feridas da ditadura do que o Brasil. Um país que não conhece o seu passado está fadado a repeti-lo. Se pudéssemos hoje assistir um filme chamado “Brasília, 1985”, talvez tivéssemos evitado chocar o ovo da serpente que insiste em nos assombrar como nação.

Márcio Coimbra é da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília.