O topless e a hipocrisia nacional - Mirian Guaraciaba
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 20 de janeiro de 2000
Mirian Guaraciaba
Falta do que fazer ou a velha mania de fingir que somos uma Nação cheia de pudores e pruridos que não nos levam a lugar algum? Ou será que os índices de violência na Cidade Maravilhosa caíram tanto que policiais militares, armados de revólveres e escopetas, podem dedicar tempo e disposição à repressão de banhistas fazendo topless? Em praias quase desertas, diga-se.
Aconteceu com Rosemeire Moura, comerciária, maior de idade acompanhada do marido, numa praia da Barra da Tijuca, no Rio, em que estavam menos de dez pessoas quatro faziam topless. O tenente de plantão mandou que ela se vestisse. Várias vezes. A moça insistiu e ele decidiu prendê-la, sob protestos gerais.
Os seios à mostra de Rosemeire atentaram ao pudor, acusaram os policiais. E lei é lei. Mas o que dirão os policiais das cenas de violência que nossos filhos assistem diariamente ao vivo e em cores nas ruas ou pela televisão? Ou mesmo os nus, cenas eróticas, sexo ao vivo na Internet liberados para qualquer idade? Isso pode?
Os seios de Rosemeire atentam menos ao pudor do que a hipocrisia cultivada no País. Menos ainda que a cena de sua prisão e as agressões sofridas por seu marido. Imagens, aliás, espalhadas pelo mundo por agências internacionais de notícias. Imagens do atraso e da intolerância. É bom que se diga, mulheres fazem topless em muitas praias do mundo.
O comportamento dos policiais cariocas reflete a sociedade brasileira e é idêntico ao que adotamos em relação às drogas. Cobramos providências do Estado contra o tráfico, condenamos o bandido que vende a cocaína, mas quantos de nós autoridades, policiais, artistas, advogados, profissionais liberais, formadores de opinião fazem uso sistemático da droga?
Somos tão fingidos que o ex-presidente Itamar Franco fez enorme sucesso ao posar no Sambódromo ao lado de uma mulher sem calcinhas. Os fotógrafos viram, registraram a cena. No dia seguinte, Itamar, que ainda despachava no Palácio do Planalto, procurou a então desconhecida modelo e atriz Lilian Ramos para continuar a conversa. Lilian mostrou muito mais que Rosemeire e não foi presa.
Autoridades do Rio de Janeiro estão dispostas a criar áreas para banhistas mais exibidos, menos puritanos. Providência necessária para que policiais militares tenham tempo para cuidar exclusivamente da segurança do cidadão que esteja acima de qualquer suspeita.
E não se trata, aqui, de fazer apologia à nudez generalizada. Nem de longe a tese seria essa. A formação brasileira, cristã, conservadora, não permitiria tal ousadia. A idéia é outra. A de propor que se discuta até que ponto vale a pena, é lícito, é saudável, é moderno, num país em que se morre de fome e de bala, na mesma proporção e velocidade, a repressão a pessoas que trabalham e vão à praia? E, por acaso, não têm vergonha de pôr o corpo à mostra?
Em plena Barra da Tijuca, na moderna e avançada cidade do Rio de Janeiro, a repressão a Rosemeire ficou tão feia e esquisita quanto a miséria nos morros ou as balas perdidas. Ou isso pode?

