O que pode a ética num mundo sem Deus - D. Agostinho Ramos da Silva
PUBLICAÇÃO
domingo, 16 de janeiro de 2000
D. Agostinho Ramos da Silva
Depois de um aperitivo em Cinco escritos morais, lançado em junho do ano passado, Em que crêem os que não crêem, que acaba de sair no Brasil, reúne cartas trocadas entre o semiólogo Umberto Eco e o cardeal de Milão, o jesuíta, biblista e papabile Carlo Maria Martini.
A questão central do debate deriva de uma pergunta do cardeal Martini, que quer saber em que se baseia a atitude moral e a visão de mundo de quem não se refere a princípios metafísicos ou a imperativos categóricos universalmente válidos. Eco procura então, numa linha próxima à de Karl-Otto Apel, viabilizar uma ética natural ou leiga, baseada na consciência da importância do outro e no fato de que o conceito de lei, indispensável à civilização e presente nas culturas mais rudimentares, consiste essencialmente na regulamentação das relações interpessoais.
Ora, mesmo a própria ética sobrenatural, ou religiosa, sempre encarnada em circunstâncias culturais, sociopolíticas e econômicas bem determinadas já nos deixa perplexos: os muçulmanos são perseguidos e exterminados na Sérvia, e, por sua vez, perseguem e exterminam os cristãos no Paquistão, sendo que este lutam ente si na Irlanda.
Lembro-me que, na época do lançamento de Cinco escritos morais, Contardo Calligaris comentava em artigo na Folha de S.Paulo que o senso de justiça deve prevalecer sobre a lei, a qual, frequentemente, pode ser injusta. Legalizar o aborto, por exemplo, torna-o menos injusto?
Em confronto com a concepção aristotélica do homem como animal político, isto é, como naturalmente social e sociável, a experiência cotidiana nos ensina que: 1) Inveja, ódio e ciúme constituem um componente indissociável da natureza humana; e 2) Ao contrário do que acontece com animais gregários, o homem distingue entre bem individual e bem social de modo a podermos afirmar sem hesitação: não existe uma ética natural. Até porque o homem não é um ser natural, mas um produto de si mesmo, é um ser eminentemente cultural.
Em tudo e por tudo um dos maiores humanistas de nosso tempo, Eco encontra o limite de seu pensamento ao dizer que a dimensão ética surge quando o outro entra em cena. Porque o outro não é, de modo algum, um imperativo categórico absoluto. Ou seja, o outro não é, por si só, uma alteridade diante da qual me detenho espontaneamente. Posso fazer isso, posso ser educado para isso, posso até ser coagido a isso por um aparato jurídico-policial que regule as relações entre os indivíduos numa determinada sociedade. Mas não sou, absolutamente, obrigado a isso.
Umberto Eco entende que a intolerância, entendida como o medo do diferente, tem origens biológicas, e pode ser superada mediante a educação para a convivência. Mas nem as abordagens isoladas que descambam fatalmente para o reducionismo nem os complexos multidisciplinares ou holísticos obtiveram êxito em, sequer no plano teórico, equacionar no homem o mistério do mal. Porque um problema é passível de equacionamento e resolução, mas um mistério não. O mistério está, pelo menos em grande parte, para além da descrição racional, mesmo metafísica. Ou, melhor, mesmo quanto pode ser descrito, dificilmente será explicado de modo satisfatório e exaustivo. Auschwitz é um fato histórico e, como tal, suscetível de várias abordagens; mas, é possível explicar Auschwitz? Contra os portões de Auschwitz se esfacelam todas as éticas naturais ou leigas, todas as leis e todas as veleidades de humanismo. Estamos, pura e simplesmente, diante do mistério do mal. Definitivamente, não é possível preservar a ética num mundo sem Deus.